Na capa do livro de bolso lançado este ano pela L&PM, um senhor de barba branca, cabelo ralo, olhos meigos, e seu inseparável charuto. Este senhor é Freud e a obra é O mal-estar na cultura, escrita por ele em 1929, já quando estava com 73 anos.
Se poucos de seus contemporâneos puderam alcançar a análise aguda da sociedade que Freud estava fazendo naquela época, no período entre-guerras, o que esta obra teria a nos dizer hoje, sobre o mundo de 2010?
É no só-depois, transcorrido algumas décadas e com a preciosa ajuda de Lacan, que podemos ler a análise que vai ao âmago do sofrimento do homem civilizado, que tem que pagar o preço do progresso cultural com déficit de felicidade. Este é um ensaio que fala da angústia e da dor por sabermos ser impotentes frente às forças da natureza, por sabermos ser mortais e por termos que irremediavelmente precisar do outro. Outro que serve para nossa satisfação sexual, como companheiro na luta por sobreviver, mas também aquele com o qual rivalizamos e sobre o qual gostaríamos de exercer nosso poder e domínio.
O ensaio consta de 8 capítulos. Inicia discutindo a religião como uma construção humana para dar conta do desamparo no qual estamos mergulhados. Desamparo diante do qual concebemos um pai todo-poderoso. Um Deus, não à imagem dos homens, mas um Deus à imagem de um pai que atende à nossa ilusão de que haveria alguém não fosse impotente como nós.
Segue o livro apresentando-nos o que seria uma programação do homem: o programa do principio do prazer, segundo o qual as nossas ações visariam obter o prazer e evitar o desprazer. E constata que é um programa condenado a falhar, pois sua execução seria a eliminação de toda tensão, o que, em última instância, seria o aniquilamento do homem, seria a própria morte. A realização do programa da cultura implica na não-realização do programa do principio do prazer.
A grande questão, o intrigante e que causou impacto entre seus contemporâneos é que temos atitudes e pensamentos que não estão a serviço de obter prazer: masoquismo, submissão, repetição de situações desprazerosas, o recuo diante da iminência de realização de um projeto ambicionado, Sobre isso, Freud dirá que está para além do principio do prazer, denominando pulsão de morte. Essa é a pedra no meio do caminho com a qual se deparou em 1920 e que implicou em uma releitura de toda a sua obra produzida até então. Aqui, em O mal estar na cultura, Freud apresenta para o público a análise da sociedade, do processo de civilização, à luz desse novo olhar sobre o homem.
Seguindo a linha de questionar a suposição de que o sentido da vida seria perseguir a felicidade, Freud analisa que todo o poder que o homem foi adquirindo, tornou-nos verdadeiros deuses de prótese, tamanho os artifícios que fabricamos para nos dar mais potência, mas não nos trouxe mais felicidade. Talvez até o contrário, pois nossa capacidade de nos destruir não cessa de ameaçar.
Nesta obra está presente a equivalência que Freud costuma fazer entre o processo de desenvolvimento da cultura e o de cada sujeito. Desde o momento, mítico, em que se formou a humanidade a partir da união dos irmãos para despojarem um tirano detentor de todo poder e de todas as mulheres. E em cada individuo o mito do complexo de Édipo ilustra essa rivalidade e disputa com o pai, detentor da mãe - fonte de toda satisfação. É preciso renunciar à mãe, mas também destituir esse pai poderoso, e o saldo restante é a culpa.
O mal-estar na cultura, o mal-estar que Freud encontra em cada um de nós aparece como angustia, aparece como culpa. Culpa que independe de estarmos cumprindo ou não com os ideais, com os mandatos. Inclusive, a culpa aparece paradoxalmente mais forte nos sujeitos mais dedicados a cumprir as leis e a ordem É que a culpa é a parcela de agressividade que, não podendo ser dirigida para fora, volta-se para o próprio sujeito.
Bem, se não puder ler toda a obra, leia ao menos os capítulos II e o VII e encontre toda a força da escrita de Freud, onde ele nos mostra o encontro que teve com aquilo que não é o que gostaríamos de saber sobre nós, tão civilizados que somos.
É um Freud que vem dizer o quanto o principio do prazer e aquele estranho além do principio do prazer estão imbricados. Que a cultura se forma a partir das forças da pulsão de vida, de Eros, agregador, mas também tem que separar os amantes e os filhos. Porque um amor sem fim seria, desculpem o trocadilho, o próprio fim. E que a forma que a cultura tem para proteger o individuo da agressividade que ele exerceria sobre os outros, ameaçando a cultura, é voltá-la para si mesmo, sob a forma de culpa. É a pulsão de morte se satisfazendo no próprio individuo.
Enfim, é um sábio Freud falando da luta eterna entre os impulsos de amor e destruição, de vida e de morte. E que a vida, afinal, é o resultado dessa dualidade.
Para continuarmos discutindo sobre que homem temos na atualidade, a Seção SC da Escola Brasileira de Psicanálise estará realizando em Florianópolis, dias 29 e 30 de outubro a sua V Jornada, este ano com o tema Somos todos loucos?
Soraya Valerim - psicanalista, membro da Seção SC-EBP