sexta-feira, 25 de março de 2011

Psicanálise e Cultura

Novo ano de trabalho, e mantemos o convite à produção na intersecção destes campos: psicanálise e cultura.
Seguindo na linha introduzida por Freud de conceber a teoria da prática clínica, temos tentado pensar teoricamente a partir de questões da atualidade que nos inquietam. Assim sendo, nosso desafio é valermo-nos da teoria psicanalítica que ajudem a pensar, a apreender a realidade. Realidade que Lacan nos mostrou que é construída, que não é dada de antemão. Assim, segue o desafio - bom desafio, instigante, já que tem se mantido entre nós do Núcleo - de utilizarmos os recursos simbólicos e imaginários para compreendermos o real. O real que ao se apresentar na cultura podemos nomear de “o mal-estar”.
Neste espaço que estamos construindo, contamos com a participação de pessoas tão interessantes vindas de outras áreas, com outros saberes, que incitam os já iniciados na psicanálise a reinventá-la a cada novo impasse que a cultura impõe.
Na reunião do dia 15/03, discutimos a partir da prática de uma das pessoas presentes, feito em comunidades de baixa renda e junto a adolescentes trabalhando no tráfico. Tentamos apreender o que se passa aí pensando que esta é uma das formas em que se manifesta a cultura do gozo desmedido. É a outra ponta, complementar ao consumidor, ao viciado; do “trabalhador” do tráfico, que paga com a integridade do seu corpo para fazer esta máquina funcionar.
Fica o convite para os que tiverem interesse em discutir os impasses da vida com outros – e não há outro jeito para a humanidade do que viver com outros- e de que forma a psicanálise pode ajudar a pensá-los.
Usaremos como material de discussão o capítulo 4 “Dificuldades com o real: Lacan como espectador de Alien”, do livro Como Ler Lacan, de Slavoj Zizek, ed Zahar. O material encontra-se a disposição para fotocópia na secretaria da Seção.
Até terça, dia 29/09, às 20h00.

Soraya Valerim - Coordenadora de Núcleo Psicanálise e Cultura
Soraya@floripa.com.br- 9963.7773

Comentários sobre o filme: "A fita branca"

O comentário a seguir foi apresentado na atividade "Psicanálise vai ao Cinema", no dia 18 de março de 2011, por Gresiela Nunes da Rosa - psicanalista

É impressionante pensar que Adolf Hitler tenha formulado uma teoria de extermínio de tão longo alcance e mais impressionante ainda é saber que tal teoria ganhou a realidade prática de maneira tão destrutiva. Mas talvez ainda mais impressionante é saber que sua idéia para ter alcançado a execução prática necessitou e contou com muitos. Não foi Hitler quem pôs em ação toda a sua idéia de extermínio daqueles que segundo ele mesmo eram de estirpe inferior como os testemunhas de Jeová, eslavos, poloneses, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, e, claro, o judeus. Hitler necessitou de muitos outros para colocar em ação suas idéias. E muitíssimos outros estiveram do seu lado, realizando o extermínio de milhares de pessoas. E por que, como, estes outros puderam compactuar com a idéia de Hitler? Como tantos juntos puderam compartilhar uma noção tão equivocada? Esta é uma indagação que desde o acontecido está presente no pensamento de muitos. E muitas hipóteses foram expressadas.
Parece que “A fita branca”, mesmo sem explicitar, nos convoca a concordar com uma teoria. A teoria de que o estilo de vida, a educação, a moral severa, estas bastantes vinculadas à agressividade, tenham repercutido no ímpeto dos sujeitos a também exercer a mesma agressividade severa sobre os outros. Wilhelm Reich formulou esta hipótese, a de que uma vida tomada por repressões demasiadas necessariamente repercute em neurose grave, e é um fator determinante para a uma aderência à ideologia fascista. 
“A fita branca”, como podemos perceber, retrata uma comunidade alemã, no início do século XX. Vários acontecimentos misteriosos giram em torno do tema da violência e da agressividade, outros nem tão misteriosos e até totalmente explícitos também giram em torno do tema da agressividade. É um filme angustiante, irritante, perturbador, e faz surgir em nós, talvez vocês concordem, sentimentos de raiva e tensão agressiva. Indignamos-nos com tamanha repressão moral e religiosa impingida aos personagens do filme, principalmente às crianças, temos um verdadeiro sentimento de revolta e absurdo. E pensamos, “não é à toa que estas pobres crianças, vinte anos mais tarde se tornaram os criminosos responsáveis pelo nazismo, pelo holocausto”. Quase que nos compadecemos pelos criminosos, porque interpretamos diante dessas imagens que o mal tem uma raiz, tem um sentido. E neste caso, a raiz do mal que foi o nazismo está nitidamente representado nos modos de vida destes alemães. O interessante é que mesmo sem o explícito, fazemos rapidamente esta conexão. 
Ao ser indagado e criticado pelo fato de o filme fazer “uma distorção performática que permite ao espectador flertar com a perspectiva de uma despolitização das raízes do nazismo e de uma germanização do próprio mal”[i], Haneke faz o seguinte comentário:
“Não ficaria feliz se esse filme fosse visto como um filme sobre um problema alemão, sobre o nazismo. Este é um exemplo, mas significa mais que isso. É um filme sobre as raízes do mal. É sobre um grupo de crianças, que são doutrinadas com alguns ideais e se tornam juízes dos outros – justamente daqueles que empurraram aquela ideologia goela abaixo deles. Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria. E este não é um problema só do fascismo da direita. Também vale para o fascismo da esquerda e para o fascismo religioso. Você poderia fazer o mesmo filme – de uma forma totalmente diferente, é claro – sobre os islâmicos de hoje. Sempre há alguém em uma situação de grande aflição que vê a oportunidade, através da ideologia, para se vingar, se livrar do sofrimento e consertar a vida. Em nome de uma idéia bonita você pode virar um assassino.”[ii]
De qualquer forma, em seu discurso, Haneke não nega seu maniqueísmo, pelo contrário o reafirma. Talvez melhor tenha sido o seu discurso diante de alguma pergunta sobre qual era a mensagem de seu filme “A professora de piano”, quando respondeu: “Meu filme não tem mensagem, isso é coisa para os correios”.
A perspectiva, apontada para a psicanálise, de que o principal motivo da aderência ao nazismo tenha a ver com o fator libidinal na população alemã, no que diz respeito ao alto grau de tensão e repressão (perspectiva reichiana?), é bastante tentadora para nós. E ainda podemos somar a esta perspectiva, ainda outros fenômenos, também subsidiados pela psicanálise de que o sucesso do nazismo foi motivado pela “identificação imaginária com um líder carismático e paternal[iii] (perspectiva freudiana?) Ainda uma terceira hipótese com bases psicanalíticas parece ter sentido: a da identificação simbólica dos sujeitos entre si através da captação da semelhança de traços entre eles, uma questão de construção de semblantes.
A crítica à Haneke baseia-se no fato de que sua produção, bem como a maior parte do que se produziu culturalmente a respeito do nazismo, segue a linha de que há uma germanização, genética inclusive, no que diz respeito ao nazismo. Sempre aí sugerido o princípio maniqueísta de interpretação do fenômeno, representado de forma espetacularmente teatral. 
Mas o fato é que gostamos da idéia de buscar um sentido, principalmente para aqueles acontecimentos que, queremos crer, podemos mantê-los controlados e quem sabe distantes. Fazemos, como dizemos na psicanálise lacaniana, um movimento do tipo àpres-coup, depois de acontecido o fenômeno 2, buscamos como sentido um fenômeno primeiro, o 1. E claro que algo tão desmesurável como o acontecimento do nazismo e suas conseqüências, como o holocausto, queremos compreendê-los para mantê-los sobre controle e afastado de nós tal possibilidade. Gostamos da idéia de que se tratarmos bem nossas crianças e se não nos reprimirmos tanto manteremos o mal à distância. 
Haneke, além da crítica que sofre sobre o tal equivoco a respeito da interpretação do que fez resultar o nazismo, também recebe críticas no que diz respeito ao estilo de linguagem que utiliza não só neste filme mas também nos outros de seu currículo, que é o cinismo.
Parece bastante interessante esta discussão. Entende-se, resumidamente, como cinismo um não-engajamento do sujeito em relação ao que diz[iv]. É interessante perceber que a história no filme é relatada pelo professor, que está um tanto quanto fora da própria história, e relata-a sem muita emoção, quase como um pura e qualquer descrição dos fatos, restando a nós, os expectadores o julgamento e o sentimento em relação aos acontecimentos relatados. Cinismo é uma forma de racionalização. E um certo tom de relativismo presente no discurso cínico, como toda a racionalização, tampona o não sabido e o que decorre disso, o desamparo. A crítica que se faz a esta possibilidade discursiva é que ela “é capaz de sustentar muito bem uma mentira sem que haja a necessidade de se questioná-la a partir da verdade como valor de referencial”[v], e assim, dá pouquíssima margem para o pensamento reflexivo e crítico.
Mas é interessante a idéia de que se tenha utilizado este mecanismo discursivo para falar sobre algo tão indizível quanto o que foi o nazismo e o holocausto. E de qualquer forma fica a questão: é justo que queiramos uma ética, ou talvez mais, uma moral, na arte?


[i] Feitosa, Frederico Antonio Cordeiro. Cinema e cinismo: distorções performativas e fruições contemporâneas em Michel Haneke. In: Estudos de Cinema, no. 23. Porto Alegre: Famecos/PUCRS, agosto de 2010.
[ii] Entrevista concedida a Anthony Lane, na revista “New Yorker”, em 05 de outubro de 2009, livremente traduzida por Maurício Stycer.
[iii] Feitosa, idem.
[iv] Idem.
[v] Idem.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Homenagem a nossa querida Vanessa Nahas

Para que estamos aqui? Em primeiro lugar estamos para corrigir uma grave omissão de longa data: dar um nome a biblioteca. Ela, que vagava simplesmente como uma pária da Seção Santa Catarina pela internet, pelo EBP Vereda, AMP Uqbar, os e-mails, os boletins, os UM por UM, ou seja pelo mundo. Ela que circulava como mais uma entre outras diretorias, a diretoria geral, a de cartéis, tesouraria, secretaria, intercâmbio e até do conselho..., ela, no entanto, essa filha apócrifa, sem identidade podia se gabar de ter uma particularidade, seu acervo incluía figuras eminentes, a flor e a nata da psicanálise, sem esquecer, que essa é a sua missão. Missão que dada às condições não excluía certo mal-estar, pelo fato de ter que escutar a cotidiana ladainha pomposa; tem o volume 4 das obras completas de Sigmund Freud, o Seminário 5 de Jacques Lacan está emprestado? A última aula do curso de Jacques Alain Miller está na xerox? Ela tinha que escutar tanto belo nome próprio, sem ter nenhum. Por isso hoje a homenagem é para nossa biblioteca, um dia memorável. Ela vai se chamar Vanessa Nahas, e foi preciso que ela, a Vanessa, fosse embora sem a nossa concordância.
A homenagem, não sem luto, não sem dor, faz parte de nosso esforço de fazermos um bom uso dos momentos preciosos que compartilhamos com ela, como se anuncia o convite. Nasce quando a editorial da revista diz que fomos “todos seqüestrados de sua alegria, de seu amor e de seu desejo decidido pela psicanálise da orientação lacaniana do Campo Freudiano...”. Perdemos todos. E hoje não adianta nos reunir aqui para contar seus méritos curriculares porque os colegas, amigos e parentes sabem de seu esforço dedicado e leve. Nem adianta considerar seus méritos de caráter, atitude, humor, temperamento ou índole, como é de praxe, também os que a conheceram lembram. O que nos pode convocar hoje é seguir a trilha traçada por Vanessa e que temos a sorte de poder continuar. Ela própria que sabia que as palavras fisgam, capturam e prendem, nos deixou a prova.
Interessada em perseguir a trilha freudiana na obra de Mário de Andrade, o autor de “Macunaima”, destaca entre outros um texto chamado “Sequestro da Dona Ausente”. Nele Mário de Andrade estuda o folclore popular luso-brasileiro e as ressonâncias que teve na poesia brasileira. A Dona Ausente é o sofrimento causado pela falta da mulher amada pelos navegadores, de um povo de navegadores. Ele refere-se à presença, no nosso folclore musical, especialmente nas cantigas de roda, do tema da mulher que vem de barca, pelo rio ou pelo mar, ao encontro do cantor, que no folclore brasileiro transforma o mar em terra, e que ao invés de se externarem como desespero, metaforizam-se nas imagens e símbolos da poesia.
Vanessa no capitulo um intitulado “Seqüestro” disse... “Analisaremos o sequestro como uma operação que aponta para o processo enunciado por Freud como recalcamento, e a sua relação com as formações do inconsciente e com a sublimação”. O Mário diz estar convencido de que isto “não é mais que a sublimação da celebrada falta de mulher que o colono sentiu na América quando veio praqui”. A palavra sequestro, mais do que a idéia de afastar algo da consciência – que, desalojado do centro da cena, pressiona pelo retorno, conforme a definição freudiana da repressão ou recalcamento –, aponta para o sentido de “tirar do caminho usando a força (ou a sedução)”, implicando uma experiência que conota violência. Poderíamos, assim, pensar o sequestro como um saber desalojado, arrancado da cena violentamente. Com o termo sequestro, no caso do navegador e da Dona Ausente, Mário traduz a violência da experiência de separação dos amantes, que passa a expressar-se indiretamente, lateralmente, através das quadrinhas e cantigas do folclore luso-brasileiro, e isto porque mesmo considerando um tanto
exagerada a idéia, registra esta citação de Freud “No sonho é a criança que permanece com todos os seus impulsos.”
Vemos assim um outro sentido da palavra sequestro que por deslocamento, se associa a sublimação. Mário chama a atenção para o fato de que as cantigas de roda infantis são feitas por adultos, e que no fabulário universal há muitos exemplos de que induzimos os outros a fazerem aquilo por cuja experiência, por alguma razão, não queremos passar.
“Coisas de que a grandiosidade trágica desapareceu, purificada a premência da vida no círculo gracioso dos sustos infantis”. Outro “plus” que a noção marioandradina de seqüestro implica é o fato desta remeter a uma experiência de significado coletivizável, na medida em que o marujo e o colono recém-chegado transformam a saudade, o sofrimento, em quadrinhas e cantigas, passando do que seria uma experiência individual para uma experiência compartilhada.
Ela nos deixou o recado, transformar a dor da separação em invenção, em criação coletiva. Acabamos de inventar uma, transformar uma bastarda em filha, ela, a biblioteca, agradece e nós não estaremos mais sozinhos dela, ela tem um lugar não só no nosso coração.

No dia 17/12/10, aniversário de Vanessa Nahas, declaramos inaugurada a Biblioteca da Seção Santa Catarina - Vanessa Nahas

Silvia Emilia Espósito