Apesar dos trinta anos dedicados ao estudo da sexualidade feminina, Freud confidencia a Jones, que não conseguira responder a pergunta que lhe intrigava: “Was will das weib?” (“O que deseja a mulher”?). E acaba por renunciar à compreensão do “continente negro” da feminilidade. Mal sabia Freud que não se tratava de tentar compreender a mulher, mas de amá-la, sem compreendê-la, conforme conclui Sérgio de Campos ao final de sua análise, quando pode consentir que la Donna è móbile qual piúma al vento, muta d’accento e de pensier. O esquema de conjunto que Freud propõe e que se apóia no Complexo de Édipo, não chega a elucidar a especificidade da sexualidade feminina. Ao afirmar que só há uma libido – a masculina – ele deixa por fora de sua teorização e elucubração, um outro campo onde se situam todos os seres que assumem a posição feminina.
Ao explorar os misteriosos labirintos da alma feminina, no mais além do Édipo, e, buscando deslindar os impasses com os quais Freud se deparou, Lacan retira o problema da feminilidade do contexto do sexual e do anatômico, para situá-lo no campo do gozo. Para tanto, inventa as “fórmulas da sexuação”, onde alinha os sujeitos de acordo com sua posição de gozo – do lado masculino ou do lado feminino. Suas fórmulas representam a escritura lógica da divisão da libido em duas partes: uma toda fálica, de um lado, e outra não-toda fálica, de outro.
Lacan isola uma parte do gozo feminino que se inscreve sob a égide do falo e está em sintonia com o significante, e outra parte que se situa fora da norma fálica e resiste à captura pelo significante, e, portanto, se mostra opaca ao sentido.
No último período de seu ensino, Lacan toma o gozo feminino como paradigma para pensar o regime do gozo propriamente dito. “O que ele entreviu pelo viés do gozo feminino, ele o generalizou até fazer dele o regime do gozo como tal” (J-A Miller. V lição do curso da Orientação Lacaniana de 2011, p.2). A partir de então, o gozo passa a ser reduzido ao puro acontecimento de corpo. “O gozo como tal é não edipiano – diz Miller –, é o gozo como subtraído da maquinaria do Édipo”, como escapando ao regime da interdição-permissão.
Com efeito, é a partir da mulher, ou melhor, do gozo feminino, que sabemos que o gozo é um absoluto para o sujeito. É por isto, que não se pode resistir a ele facilmente: porque é a exigência de um absoluto. O termo “absoluto” implica disjunção com respeito à dialética, e, portanto, à lógica do significante; em grego, apolelumenon, significa: sem laço, que não depende de nada, incondicional, que não respeita nenhum limite. “É um quero isso, o exijo, e ponto! Aqui a vontade não é o desejo. A vontade é a pulsão, é o gozo” (Isabelle Durand. El superyó, femenino (2008), p.97).
Não faltam testemunhos, na clínica psicanalítica, das manifestações do gozo feminino em sua vertente devastadora: desde a mais leve desorientação até a angústia profunda, com todos os graus de aflição e extravio. Pode se apresentar como uma dor psíquica ligada a um afeto de não ser, de ser nada, com momentos de ausência de si mesmo, que se traduz por uma sensação de incompletude radical. A essa falta de consistência pode se somar um sentimento de fragmentação corporal que pode estender-se a ponto de indagar o diagnóstico diferencial e fazer pensar em psicose (J-A Miller. De mujeres y semblantes. (1994), p.89).
Cleudes Maria Slongo - Coordenadora do Núcleo de Investigação da Clínica do Feminino
Seção SC da EBP
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