quarta-feira, 30 de julho de 2008

Felicidade pronta entrega: felizes a qualquer preço?


Por que os psicanalistas iriam fazer da felicidade, logo neste momento, o tema dos seus encontros e jornadas, se a felicidade é algo que sempre esteve presente nas expectativas dos analisandos em relação com suas análises? Não é uma novidade que quando alguém procura um analista é porque se está sentindo infeliz e quer ter uma vida melhor. O que foi que mudou, então, para que este afeto tenha sido colocado como alvo da reflexão psicanalítica?
Mudou o lugar que a satisfação tem na cultura. Até a não muito tempo atrás, crianças, jovens e adultos tinham de virar-se com ideais culturais que exigiam uma certa renúncia das satisfações para poder conquistar um lugar no mundo, com os outros. Mas já faz algum tempo que um novo ideal que exige “satisfação-jà!”, tem conquistado seu lugar na cultura e, a partir de então, cada vez custa mais aceitar que nem tudo é possível; que para ganhar há que se saber ceder; que quem corre atrás da satisfação plena se topa com o limite da pior forma possível. Enfim, hoje temos de nos virar com um ideal que nos faz acreditar que nos objetos que o mercado oferece encontraremos a forma de preencher o vazio que nos caracteriza enquanto humanos e que, uma vez preenchido, seremos felizes para sempre. Mas não nos enganemos: felizes para sempre quer dizer desumanizados. Lembram do slogan Sem medo de ser feliz? Bom, hoje há que se ter, senão medo, ao menos cautela com este imperativo da felicidade. Não é brincadeira! A felicidade tem se tornado commodity e a ilusão de poder achá-la nas prateleiras das lojas, incluída a farmácia, ganhou muita consistência. E este estado das coisas não seria perturbador se não fosse o paradoxo no qual o imperativo de “felizes-a-qualquer-preço” nos coloca: quanto mais obedecemos a esse imperativo, mais angustiados ficamos e menos possibilidade temos de saber sobre o modo singular que cada um tem de se satisfazer na vida. É como uma reedição contemporânea do “Maria vai com as outras”, só que desta vez, Maria se tornou, bulímica, anoréxica, toxicômana, depressiva, hiperativa, tem ataques de pânico, transtorno de atenção, compulsão a comprar, compulsão pelo sexo e outros distúrbios dos mais variados. Convenhamos que não é necessário ser psicanalista para se dar conta dos efeitos catastróficos que a busca da completude absoluta tem para um sujeito. Tampouco e necessário ser analista para saber que não adianta querer ressuscitar os velhos ideais da renúncia à satisfação. Insistir nessa renúncia generalizada, sem levar em conta o consentimento de cada um, nos leva para posições cada vez mais hipócritas e canalhas. O que fazer, então? A psicanálise da Orientação Lacaniana propõe inventar e ajudar a que cada um se torne um inventor de uma resposta singular, ligada com sua historia pessoal, que o oriente pelos cegos, surdos e silenciosos caminhos da satisfação pulsional. Inventar-se um sintoma, dizemos na psicanálise. Esse é o desafio atual e por isso a felicidade tornou-se uma questão que nos ocupa.

Oscar Reymundo - EBP/AMP - Diretor Geral da EBP-SC (em formação)

domingo, 20 de julho de 2008

“A verdadeira felicidade é a inquietude” (1)



Estando às voltas com o tema de nossa III Jornada da EBP-SC “Felicidade pronta-entrega: felizes a qualquer preço?”, resolvi pôr em destaque trechos de uma entrevista concedida por Humberto Eco, publicada no jornal Folha de São Paulo, pelas interessantes colocações do filósofo e escritor italiano, a respeito da Felicidade.
"Humberto Eco é um homem quase feliz”, apresenta-o o jornalista, “um professor que desfruta a companhia de seus alunos e que agora, aos 76 anos, aposentado de suas múltiplas ocupações acadêmicas [...] continua a trabalhar ‘ainda mais do que antes’, dando aulas doutorais, escrevendo livros, [...] participando de congressos, lendo histórias em quadrinhos [...] e rindo como um garoto”. Esse homem quase feliz “canta, recita, conhece citações inteiras de memória, que se interessou antes dos outros pelas novas tecnologias, que as utilizou em seus trabalhos; [...] embora mantenha o celular quase sempre desligado, [...] usa o e-mail quase que obsessivamente, como se fosse o prolongamento de suas conversas”.
Para o escritor “quem se diz feliz o tempo inteiro é um cretino”, então, quando perguntado pelo jornalista sobre uma cena de seus 13 anos, em que, tocando trompete na Praça de Alexandria, transmitia felicidade, Eco responde: “aqui há duas coisas – aquele garoto e a felicidade. São diferentes, não podem coincidir. Não acredito na felicidade – estou lhe dizendo a verdade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou feliz por completo – sempre preciso fazer outra coisa”.
Porém ele não deixa de acreditar na existência de felicidades, no plural; para o escritor, tal como concebemos desde a psicanálise, elas (as felicidades) tem o tempo de um instante, são momentos; “elas duram dez segundos, ou meia hora”. Ele fornece vários exemplos de momentos felizes em sua vida; um deles é o do nascimento de seu filho, que reaparece como o menino de seu livro “O Pêndulo de Foucault”. Ainda que o coloque como exemplo de um momento feliz, o escritor não deixa de colocar em dúvida se realmente o foi ou se assim se tornou no momento em que o narrava, porque, para ele: “existem momentos de felicidade quando você consegue expressar alguma coisa que lhe deixa contente. [...] enquanto contava sobre aquele menino, eu estava feliz porque acredito que a vida serve apenas para recordar nossa própria infância”, ainda que advirta estar informado ser esta uma afirmação ‘reacionária’.
Freud (2) utiliza-se de um ditado popular para estabelecer a relação entre o infantil e o adulto: “a psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a amnésia infantil do homem”. Machado de Assis utiliza o mesmo dito popular, em seu livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (3). Nesta linha segue Humberto Eco, estabelecendo uma relação direta entre as recordações de infância e a felicidade do homem e confessa que recuperar tais recordações talvez seja a razão pela qual escreve. “Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de minha infância é um momento de felicidade, mas isso não quer dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade. A infância e a adolescência são períodos muito tristes. As crianças são seres muito infelizes. Talvez eu, enquanto tocava trompete, com medo de que fosse a última vez em que tocaria aquele instrumento, tenha sido um menino infeliz” (4).
Ao criticar o curso civilizatório atual, que torna tudo obsoleto no momento seguinte, Eco dá como exemplo o fato de ‘nenhuma biblioteca científica americana citar livros de mais de cinco anos atrás’; também faz côro à importância dada por Freud ao passado sobre o presente, quando constata que há uma perda na relação dos sujeitos com o passado, e que isso se dá numa tal velocidade, cujo calibre talvez torne impossível a adaptação da psicologia humana. Teme o autor quanto à perda de memória, ao dizer que “a abundância de informação sobre o presente não [...] permite refletir sobre o passado, [...] essa abundância é uma perda e não um ganho”, pois para ele o que existe é, sobretudo, a abundância da mesma informação. “A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe mais alma, você é um animal. Se você bate a cabeça [...] e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma”.
É desde essa perspectiva, da importância da memória para a subjetividade, que Humberto Eco, ainda que tenha se mostrado pessimista quanto à existência de felicidade(s) na infância e adolescência, ressalta o bonito que ocorre ao envelhecer: é que “recordamos de uma multiplicidade de coisas da infância que tinham sido esquecidas”. Nesta auto-análise, considera-se muito otimista em sua velhice, pois “quanto mais envelheço mais recordações tenho de minha infância”
Ao ser perguntado pontualmente sobre o que o faz feliz, responde: “Não sei. Eu já disse que não acredito nisso, mas, enfim, fico feliz quando encontro um livro que estava procurando havia muito tempo. Quando o compro e o tenho, olho para ele e me sinto feliz. Mas a sensação acaba ali. Enquanto a infelicidade é o que me provoca o fato de não ter este ou aquele livro. A verdadeira felicidade é a inquietude. É sair à caça, não matar o pássaro”.
Assim, por finalizar, vale à pena lembrar que uma das ‘receitas’ contemporâneas para que o “homem seja feliz”, que alia saber da ciência e interesse de mercado, dirige-se para a propagação desenfreada do consumo de antidepressivos, ansiolíticos e ‘anti-inquietantes’ nas administrações generalizadas de Ritalina. A ideologia reinante, que coloca a felicidade na ordem de um imperativo, também propõe a terapia pela palavra; o grande problema é que nestes casos costumam ser indicadas as Terapias Cognitivos Comportamentais, como as únicas possíveis coadjuvantes aos sujeitos, já um tanto adormecidos pelas drogas. Neste caso, o historicizar-se pela fala, o consentir com o inconsciente e o trabalho que possibilita a localização e a construção de um saber sobre os afetos cristalizados nos sintomas, tal como propõe a psicanálise, não está presente. O fundamental posto é que o sujeito ‘deve ser feliz’, sendo tristezas e sintomas elementos que atrapalham este programa, devendo ser eliminados como perturbação da vida ‘normal’, sem que nada se possa aprender com eles.





Laureci Nunes/Membro da EBP e AMP, Diretora de Cartéis e Intercâmbio da Seção SC e co-responsável pela comissão de Divulgação da III Jornada da Seção SC(ef).



(1) ECO, H., frase extraída de entrevista concedida ao jornalista Juan Cruz, publicada no Jornal Folha de SP em 11.05.08. Humberto Eco é lingüista e escritor italiano, professor aposentado da universidade de Bolonha, autor, entre outros de: “O nome da Rosa”, “Apocalípticos e Integrados” e o mais recente “Quase a Mesma Coisa”, sobre tradução.
(2) FREUD, S., “O Interesse científico da psicanálise”, parte II, íten D, Edição Standart das Obras Psicológicas Completas (1913), Vol. XIII, edição digital.
(3) ASSIS, M. “ O Menino é pai do homem”, in: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. XI. “CRESCI; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas de que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino”. Mencionado, oralmente, por Luis Carlos Cancellier de Olivo.
(4) A cena mencionada, refere-se ao momento em que tocava trompete para os “partigiani” (movimento anti-facista), Juan Cruz, Jornal Folha de São Paulo, idem.

sábado, 19 de julho de 2008

Núcleo de Pesquisa Sobre Psicose, III Jornada da Seção SC e XVII Encontro Brasileiro


O tema que movimentou a pesquisa do Núcleo neste semestre, desde sua abertura, passando pelos textos estudados, acompanhados de seus casos clínicos e os trabalhos apresentados, foi a relação entre a manobra da transferência na psicose e a possibilidade de constituição de um sinthoma por parte do paciente. Vale lembrar, neste percurso, a importância de tomarmos em conta os sintomas que o sujeito já constitui para fazer frente ao real que o invade e, mais do que isto, daí partirmos e o acompanharmos em suas construções. Prosseguiremos, no próximo semestre, melhor precisando como opera aí o analista.
Porém, desde já podemos dizer que um ponto importante para pensar este modo de operar diz respeito à mudança de estatuto do pai do primeiro para o segundo ensino de Lacan, sendo o estatuto do pai neste último, o de um pai mais condizente com os tempos de um o Outro que não existe, tempos de felicidade pronta entrega, para nos referirmos ao tema da III Jornada da Seção SC “Felicidade Pronta Entrega: felizes a qualquer preço?” e do XVII Encontro Brasileiro,“ Psicanálise e Felicidade: sintoma, efeitos terapêuticos e algo mais”, tema que orienta nossas pesquisas. Para finalizar algumas perguntas, para irmos esquentando os tamborins até a chegada destes eventos: qual a relação entre o gozo na psicose e o que assistimos hoje no âmbito social? Haveria aí alguma diferença ou poderíamos dizer que algo que era próprio à psicose hoje subiu ao zênite social?

Maria Teresa Wendhausen
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Sobre Psicose

terça-feira, 15 de julho de 2008

Miguilim: as perdas e os ritos de passagem

"Pingo-de-Ouro" é a primeira experiência de perda, muito dolorosa, para Miguilim. Era uma cachorra "bondosa e pertencida de ninguém [...] sempre magra, doente da saúde e diziam que ia ficando cega". (p.17) Ela tivera cachorrinhos e só vingou um. Ambos foram dados pelo pai de Miguilim aos tropeiros que passaram pelo Mutum. Pingo-de-Ouro "puxaram, amarrada numa corda, o cachorrinho foi choramingando dentro dum balaio".(p.18) Miguilim muito entristeceu, mas guardou a esperança de que ela um dia voltasse."Então se ela já estava quase cega, por que o pai a tinha dado para estranhos? Não iam judiar de Pingo-de-Ouro? Miguilim chorou de bruços, cumpriu tristeza, soluçou muitas vezes [...] era tão pequeno, com poucas semanas se consolava." (p.18) Com o pé cortado pelo caco de pote, Dito, o irmão mais novo, ficou deitado na rede, no alpendre. Pedia a Miguilim que reportasse para ele tudo o que se passava na casa, no curral, com os agregados, no presépio, porque já era época de se armar o presépio, incumbência que cabia à Vovó Izidra. Armar o presépio era um acontecimento. Os personagens do presépio, ela guardava numa canastra que carregava para onde ia e eram reunidos desde sua mocidade: os reis magos, pastores,muitos bichos e na manjedoura Nossa Senhora, São José e o menino Jesus. Dito, assim como todas as crianças, queria ver a montagem do presépio, mas pulando com um pé só, doía... Vó Izidra trazia algumas coisas para ele ver. Não poder participar do andamento dos ocorridos é o princípio da perda para Dito, Vovó Izidra, Miguilim, todos da casa, vizinhos e agregados. Miguilim se coloca, nesta situação, como resistência ao desfecho. Enquanto reporta os fatos que Dito não pode mais presenciar, busca conservar a ordem, dentro da desorganização que cada vez mais se avizinha.'Ele vai morrer Mãitina?! [...] Faz um feitiço para ele não morrer, Mãitina [...]Mas aí, no vôo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava. [...] Drelina, branca como pedra de sal, vinha saindo: - Miguilim, o Ditinho morreu..." (p.101) O enterro ia ser no cemiteriozinho na Vereda do Terentém, um dia inteiro de viagem. Mãitina fazia farofa de carne, cozinharam mandioca para os homens que iam levar Dito até o cemitério. O corpinho do menino foi embrulhado numa colcha de chita, como a mãe queria, um arremedo de um pallium que dissimulava a nudez da morte e que, na pobreza, estava mais próximo de uma mortalha, o corpo, enfeitado com alecrim e pendurado numa vara comprida, em cada ponta um carregava. Os ritos funerários buscam a transição da insegurança a um instável retorno à ordem, assegurando que o morto deve partir. Vó Izidra, depois que saiu o último homem, fechou a porta. Ali se estabelecia o primeiro momento do rito de separação. Dito, agora, não mais fazia parte dos vivos. Fim do velório e a porta fechada se punham como uma borda, a estabelecer limite e início do trabalho simbólico de desligamento. Miguilim está esvaziado, cansado do sofrimento, do choro, da angústia..."Os lugares, o Mutum – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos" (p.104) e ele é só um menininho! Ainda não crê mesmo que Dito não vai voltar, que agora é o nunca mais. Quer um milagre, voltar o filme do tempo, conciliar Dito vivo-Dito morto, brincadeiras, conversas, estórias... Mas, o presente é o verdadeiro lugar da existência. A recusa ao enfrentamento do cotidiano, do presente, se deve a um medo profundo em aceitar a insolubilidade das contradições e isto nos põe a espera de uma redenção final. Miguilim se apega às palavras da Mãe, enquanto lavava o corpo de Dito. Talvez porque naquele momento em que ela as pronunciava, embora fosse "O ponto mais fundo da dor," (p.105) a transição da vida para a morte era ainda nebulosa. Dito, para Miguilim, ainda não tinha passado de doente a morto. O olhar no passado, como lugar da inteireza, inspira o desejado milagre do retorno, do não havido. Miguilim ia precisar viver outras experiências de um tempo de luto para poder cicatrizar as feridas. É preciso aprender a viver sem o que morreu, a vida do grupo deve entrar na normalidade. Convém lembrar que a morte do outro é a pré-figuração da morte de si próprio e como esta simbolização é assustadora, logo a vida deve seguir em frente, dentro de um rearranjo possível. Para Miguilim Mãitina era a pessoa com quem sempre podia falar do Dito e chorarem juntos. É dela a idéia: "Escondido, escolheram um recanto, debaixo do jenipapeiro, ali abriram um buraco, cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito, furtaram, para enterrar, com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus guardados, trouxe uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas, pedrinhas amarradas com embira fina; [...] Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos. Tudo se enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com terra, depois foram buscar as pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão, apertadas, remarcando o lugar; [...] Era mesma coisa se o Dito estivesse depositado ali, e não no cemiteriozinho, longe, no Terentém." (p.106) A cumplicidade entre eles é protetora. Só eles compartilhavam o segredo. Dito agora está presente. Se o milagre de reviver Dito não acontece, pelo menos há um lugar para ele no Mutum, escondido pelo ritual de Mãitina. O rito reuniu Dito, Miguilim e Mãitina, protegendo-os da ausência, do desamparo, da crueldade da morte, e das relações hostis entre os outros vivos. Quando o desejado não tem chance de chegar e há o desencanto pela espera inútil, quando se acredita que as energias foram gastas em vão... pode surgir o inesperado...O homem que chega a cavalo é um doutor. "Migulim, espia aqui: quantos dedos da minha mão você está enxergando? [...] Este nosso rapazinho tem a vista curta." (p.130) Ele faz Miguilim experimentar os óculos que tira do próprio rosto. "Miguilim olhou. Nem podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, [...] Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinha menores [...] O doutor ia levar Miguilim para mandar fazer uns óculos, menores, adequados para o tamanho dele. .Miguilim, mais uma vez olhou para tudo o que pôde, o gado, os matos, os buritizais... Ah! O Mutum era bonito! Despedidas... "Um soluçozinho veio. O Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. (p.133) Outra partida, agora diversa de quantas tinha ele vivido, também dolorosa. "Toda saudade é uma espécie de velhice." (Rosa, Grande Sertão... p.40) Miguilim, já não era apenas um menininho sofrendo a orfandade, a indigência, e o abandono. "Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande." (Rosa, Grande Sertão..., p.422.)
As citações do texto de Guimarães Rosa são da edição 9a da Nova Fronteira, 1984

Ana Lucia Magela - Educadora, com doutorado focado em sócio-antropologia do quotidiano, desenvolvido na FEUSP/Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien (Paris V- Sorbonne).

domingo, 13 de julho de 2008

A MULHER ATUAL E O IMPERATIVO DA FELICIDADE


Ante a subjetividade de nossa época, afetada pelo declínio vertiginoso dos ideais paternos e pela ascensão do objeto a como mais-de-gozar, a ciência responde com promessas de felicidade e de garantia de jovialidade, provocando no homem atual um empuxo desenfreado aos objetos de consumo, oferecidos à pronta-entrega pelo mercado capitalista.
Ao se interrogar a respeito do propósito da vida, Freud - em seu brilhante artigo de 1930, O mal-estar na civilização, cujo título revelador foi originalmente proposto como A infelicidade na cultura - enfatiza que a busca da felicidade perene é a ânsia maior do homem em todas as épocas: “É simplesmente o programa do princípio de prazer”, que se concretiza pela presença do prazer intenso, pela satisfação pulsional sem renúncias. Insaciável, o princípio de prazer tenta combater tudo que impõe limites a ele. Contudo, essa luta está invariavelmente fadada ao fracasso, “todas as regulamentações do universo são-lhe contrárias”, diz Freud. Os ditames do princípio de realidade logo força o ser humano a controlar seus desejos em estado bruto.
No que concerne à “querida mulher” na conjuntura atual, vamos encontrar um sujeito subjugado a um imperativo de gozo superegóico: GOZA! frente ao qual ele apenas responde: OUÇO! OBEDEÇO! Refém de um discurso que dita um padrão de felicidade, beleza, juventude, autonomia e realização a qualquer preço, ela não mede sacrifícios para se colocar a altura desse Ideal infernal de “dever ser”. A mulher moderna “deve ser”: feliz, auto-suficiente, livre, independente, linda e realizada, mas “não deve” se apaixonar, diz Leda Guimarães. E acrescenta que se trata do “avanço vertiginoso de uma nova máscara da feminilidade”. A máscara da mulher “multi-facetada” em suas várias potências fálicas: a malhadora diet; a profissional realizada; a politizada; a amante liberada; a mãe psicopedagogizada...
Qual deve ser a ação do psicanalista no sentido de contrapor-se a essas verdades universalizantes sustentadas pela subjetividade de nossa época?

Cleudes Maria Slongo - (responsável pela Oficina da Clínica do Feminino- EBP/SC - em formação)

A “Oficina da Clínica do Feminino” e a Seção SC, convidam para a Atividade Preparatória à III Jornada da Seção SC e XVII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
Data: 14/08/08
Horário: 20:00 horas
Local: Sala de aulas da Seção SC.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Super Interessante

Não deixem de ler o artigo de Denize Guedes publicado na revista Super Interessante, edição de junho/2008. A autora percorre com a astúcia de quem tem a pretensão de demonstrar que existe a leitura imparcial, os caminhos das terapias da palavra, conduzindo o leitor a conclusão desejada: a de que a terapia da palavra produz o efeito placebo e não científico, como é o caso das TCCs. Fiquei pensando no que nos confidenciou Miller em seu curso de orientação lacaniana 2007/2008, sobre seu sonho de criança, ser jornalista. É como jornalista que ele quer abordar o tema em voga: a imagética cerebral. É isso aí, vale a pena levar a sério o sonho de criança.

Eneida Medeiros Santos - correspondente da EBP-SC (em formação)

Miguilim e a angústia da morte

O centenário de nascimento do escritor GUIMARÃES ROSA, comemorado em 27/06/2008, enseja esta reflexão sobre a angústia da morte vivida por uma criança e poderá incitar desdobramentos no campo da psicanálise. O conto “Campo Geral” é a estória de “Um certo Miguilim”, menininho de oito anos, mirrado, franzino, que morava com a família longe ...pra lá da “Vereda–do-Frango-d’Água”... lá no Mutum. Miguilim tem sempre medo do desamparo: “Ser menino a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma ” era frágil e temeroso de tudo, na família só ele estava doente e sabia que ia morrer. A tristeza de Miguilim não é com a suposta doença, nem com a sua morte próxima. Claro que ele tem medo do nunca-mais, da irreversibilidade, do acordo com Deus ser esquecido... A melancolia de Miguilim é, todavia, com a vida. “Ele bebia um golinho de velhice”. (p.71) Diante da rudeza, da incompreensão dos adultos de seu grupo primário, ele se sente desamparado e a morte pode se colocar como uma forma de negociar com esta angústia. “uma liberdade interior que menospreza ou tenta usar de astúcia contra as violências externas é uma atitude que, embora um pouco romântica, não deixa de possuir o vestígio de uma certa grandeza, cujo aspecto trágico deve ser analisado”. (Maffesoli, 1984, p.88) Decidir que vai morrer, ter uma doença imaginária, negociar com Deus o melhor dia, são convicções que podem ser interpretadas como exercício de uma liberdade interior, sufocada pelas repressões e desencantamentos. É um respiradouro que Miguilim elabora para oxigenar a vidinha em hipóxia. “No trágico do cotidiano, uma mágoa discreta e imperceptível pode pesar com força no transcurso de uma vida, fazendo com o que chamamos de sabedoria não seja pura hipocrisia ou simples aquiescência. Ela é uma modéstia grandiosa que sabe ou sente que convém usar de astúcia para com a incoerência do social ou que é preciso negociar com as formas estranhas segregadas por esse social”. (Maffesoli, 1984,p. 90). A explicação da vida é sempre a posteri. As “correntes quentes do vivido” antecedem e dispensam teorizações. Pode-se encontrar algum alívio no ato de negociar com esta própria finitude. Encarar a morte, mesmo que fictícia, mesmo como um recurso imaginário, pode ser uma saída para a imposição mortífera, e retornar das águas do Estige, tendo enfrentado um limite, com um sentimento de gestão das pequenas e grandes mortes cotidianas. As fantasias de Miguelim são guiadas para a morte com medo, mas também como solução. Desde que a negociação se firmasse... e os dias escorriam... ele escondia sua certeza e continuava a se comportar como se nada houvesse. Queria que quando chegasse o dia tudo continuasse normal, cada um nos seus afazeres, mas os dias “não cabiam dentro do tempo.” (p.55) e ele conferia os sinais da doença: “salivava, queria saber se já sobrava o gosto de sangue!” (p.54) Temia que Deus se esquecesse do combinado! Uma profunda melancolia com a chegada do dia marcado: “Morria, ninguém não sentia que não tinha mais o Miguilim. Morria, como arterice de menino mau?” (p.57) Já é com saudade que procura reparar em tudo, para guardar na lembrança, como se já não mais existisse. É benevolente com os adultos... tudo tem um ar tristonho de despedida . A morte não é uma “coisa”, não é objeto e nem comporta nos discursos biológicos da ciência. Quando se tenta circunscrevê-la na linguagem, nada mais se está fazendo do que tentar bloquear a angústia do ser humano diante deste incompreensível. Ela se coloca como a alteridade absoluta. Como um eu pode experienciar o não-eu? Assim, só se vive a morte de outrem. Morrer não é um verbo que se conjuga na primeira pessoa do presente do indicativo. Por que Miguilim elaborou o imaginário de sua própria morte? Por que “carecia de pensar feito já fosse pessoa grande?” É de se estranhar que uma criança de 7 para 8 anos crie uma idealização da própria morte. Em geral, nesta fase da vida, uma criança experiencia a morte, mediada pela morte de um outro! Todavia, é preciso levar em conta o interessante processo de amadurecimento de Miguilim, sua sensibilidade exacerbada diante das mortes de bichos que os adultos empreendiam: Mesmo sem clara noção do que fosse morte, já a percebia como algo negativo, ligado à destruição, ao afastamento. Ele ia muito além das representações convencionais que os adultos faziam da morte e, particularmente, da insensibilidade deles para com outros viventes não humanos. Quando é de se esperar que a reprodução do processo de dureza da vida rural e da apropriação da noção de morte, se dê na interação com parceiros, onde o grupo familiar, primário, se põe em evidência, Miguilim toma um atalho, e elabora, talvez de modo canhestro, sua própria morte, “a morte que vem curar tudo.” (Áries, 1989, p.17) Esta concepção é somatizada nas dores físicas que Miguilim sente, no definhamento, enfim, na tristeza e na certeza da morte. Embora, ainda em tenra idade, ele demonstra um desencantamento para com os adultos que o cercam. Não tem clara consciência disto, até porque a imposição do respeito familiar e a censura religiosa não o permitiam. Mas não quer ser como eles quando for grande... Os adultos judiam, torturam, matam, provocam a fúria de Deus, abusam dos inofensivos e indefesos. A morte precoce pode ser um desligamento, uma saída. Ele tem noção de sua própria finitude – a sabedoria dos limites, percebe-se como um ser trágico: “é no momento em que tomo consciência de minha finitude que cada instante de minha vida se carrega de todo o peso do meu destino. Cada um dos meus atos se inscreve nele como uma peça nova de uma edificação irreversível que continua por toda a duração de minha existência, deixando-me cada vez com o gosto do inacabado”. (Thomas, 1978 p.24) Miguilim acompanha a sina do irmão mais novo, Dito, desde o acidente, com o corte no pé, o agravamento da doença, a agonia e a morte, sem possibilidade de acreditar no que se desenrola diante de seus olhos infantis. Já Dito percebe que está sendo conduzido ao fim inexorável: “’Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!... E o Dito quis rir para Miguilim. mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vierem, puxaram Miguilim de lá.” (p.100) Quando o embate entre vida e morte se afrouxa e abre espaço para que impere o fim, a desordem, Dito não é um ser humano desesperado. Ele percebe a sua terminalidade como um ser trágico, entregue ao seu destino, enquanto Miguilim encarna o drama; não acredita que a desordem triunfe, ela só pode ser transitória! Pode ser controlada!

As citações do texto de Guimarães Rosa são da edição 9a da Nova Fronteira, 1984
Ana Lucia Magela - Educadora, com doutorado focado em sócio-antropologia do quotidiano, desenvolvido na FEUSP/Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien (Paris V- Sorbonne).

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Conversando sobre criação

Dia 8/07, às 19h30, na sala Multimídia do CIC, em Florianópolis.

Um encontro com dois artistas. Nei e Loro. O que podemos querer ouvir deles, um artista plástico e outro escritor? O grupo de leitura “Psicanálise e cultura: do mal-estar à sublimação” convidou-os a conversarem, com psicanalistas e afins, sobre o que é criar, sobre o que criam, como criam. Sobre como é abordar algo tão próprio e mesmo assim poder tocar o outro, sem que isso afugente. O que é entregar uma obra sua para ser vista, ouvida, tocada, falada?
Produzir objetos para exibir, para entregar ao público. Objetos que saem das entranhas e que são acolhidos pelo outro. Que coisa é essa que o artista nos entrega? A criação se lhe impõe? Como é o trabalho de tentar expressar a alma, a emoção, o mais além. Talvez seja o que Lacan diz, no Seminário 7: “as coisas que estão em questão são as coisas enquanto mudas. E as coisas enquanto mudas não são exatamente a mesma coisa que as coisas que não têm relação alguma com as palavras.”
O que uma psicanálise, que se dispõe a encontrar a verdade única, singular, de cada sujeito, sem saber no que vai dar, tem de criadora, tem de poeta, tem de pintora? Uma psicanálise que se dispõe a suportar o vazio que está além das palavras, mas que pode ser organizado, no que pode, por elas. Talvez o artista seja aquele que é chamado a expressar esse vazio, de uma forma inédita.
Para iniciar a apresentação dos nossos convidados para esta atividade, seguem trechos de suas escritas.

Nei Duclós, em O Sentimento Sem Nome.
A vida é um eterno assassinato dos sentimentos sem nome. Como não podem ser identificados, não há batismo. Chamamos de paixão, amor, empatia, todas as palavras, mas não se trata disso. É algo completamente desconhecido. É território inexplorado, que fazem a riqueza da psiquiatria. Não se trata de batizar, mas de identificar como algo próprio, que faz parte de um conjunto maior. É mais do que a arqueologia do coração e da mente, É trabalhar com um universo desconhecido, que está dentro de nós, mas estamos ocupados com outras coisas.”

Loro, por Loro.
“Em tempos me sinto como escura caverna trabalhando solitária e longa na expectativa de uma brecha de sol, uma chama ou lanterna para que eu apareça a iluminar caminhos doutros. Translúcidos.”

Até lá.

Soraya Santos Valerim
Organizadora da atividade
Psicanalista. Membro da Seção SC/EBP.