terça-feira, 15 de julho de 2008

Miguilim: as perdas e os ritos de passagem

"Pingo-de-Ouro" é a primeira experiência de perda, muito dolorosa, para Miguilim. Era uma cachorra "bondosa e pertencida de ninguém [...] sempre magra, doente da saúde e diziam que ia ficando cega". (p.17) Ela tivera cachorrinhos e só vingou um. Ambos foram dados pelo pai de Miguilim aos tropeiros que passaram pelo Mutum. Pingo-de-Ouro "puxaram, amarrada numa corda, o cachorrinho foi choramingando dentro dum balaio".(p.18) Miguilim muito entristeceu, mas guardou a esperança de que ela um dia voltasse."Então se ela já estava quase cega, por que o pai a tinha dado para estranhos? Não iam judiar de Pingo-de-Ouro? Miguilim chorou de bruços, cumpriu tristeza, soluçou muitas vezes [...] era tão pequeno, com poucas semanas se consolava." (p.18) Com o pé cortado pelo caco de pote, Dito, o irmão mais novo, ficou deitado na rede, no alpendre. Pedia a Miguilim que reportasse para ele tudo o que se passava na casa, no curral, com os agregados, no presépio, porque já era época de se armar o presépio, incumbência que cabia à Vovó Izidra. Armar o presépio era um acontecimento. Os personagens do presépio, ela guardava numa canastra que carregava para onde ia e eram reunidos desde sua mocidade: os reis magos, pastores,muitos bichos e na manjedoura Nossa Senhora, São José e o menino Jesus. Dito, assim como todas as crianças, queria ver a montagem do presépio, mas pulando com um pé só, doía... Vó Izidra trazia algumas coisas para ele ver. Não poder participar do andamento dos ocorridos é o princípio da perda para Dito, Vovó Izidra, Miguilim, todos da casa, vizinhos e agregados. Miguilim se coloca, nesta situação, como resistência ao desfecho. Enquanto reporta os fatos que Dito não pode mais presenciar, busca conservar a ordem, dentro da desorganização que cada vez mais se avizinha.'Ele vai morrer Mãitina?! [...] Faz um feitiço para ele não morrer, Mãitina [...]Mas aí, no vôo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava. [...] Drelina, branca como pedra de sal, vinha saindo: - Miguilim, o Ditinho morreu..." (p.101) O enterro ia ser no cemiteriozinho na Vereda do Terentém, um dia inteiro de viagem. Mãitina fazia farofa de carne, cozinharam mandioca para os homens que iam levar Dito até o cemitério. O corpinho do menino foi embrulhado numa colcha de chita, como a mãe queria, um arremedo de um pallium que dissimulava a nudez da morte e que, na pobreza, estava mais próximo de uma mortalha, o corpo, enfeitado com alecrim e pendurado numa vara comprida, em cada ponta um carregava. Os ritos funerários buscam a transição da insegurança a um instável retorno à ordem, assegurando que o morto deve partir. Vó Izidra, depois que saiu o último homem, fechou a porta. Ali se estabelecia o primeiro momento do rito de separação. Dito, agora, não mais fazia parte dos vivos. Fim do velório e a porta fechada se punham como uma borda, a estabelecer limite e início do trabalho simbólico de desligamento. Miguilim está esvaziado, cansado do sofrimento, do choro, da angústia..."Os lugares, o Mutum – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos" (p.104) e ele é só um menininho! Ainda não crê mesmo que Dito não vai voltar, que agora é o nunca mais. Quer um milagre, voltar o filme do tempo, conciliar Dito vivo-Dito morto, brincadeiras, conversas, estórias... Mas, o presente é o verdadeiro lugar da existência. A recusa ao enfrentamento do cotidiano, do presente, se deve a um medo profundo em aceitar a insolubilidade das contradições e isto nos põe a espera de uma redenção final. Miguilim se apega às palavras da Mãe, enquanto lavava o corpo de Dito. Talvez porque naquele momento em que ela as pronunciava, embora fosse "O ponto mais fundo da dor," (p.105) a transição da vida para a morte era ainda nebulosa. Dito, para Miguilim, ainda não tinha passado de doente a morto. O olhar no passado, como lugar da inteireza, inspira o desejado milagre do retorno, do não havido. Miguilim ia precisar viver outras experiências de um tempo de luto para poder cicatrizar as feridas. É preciso aprender a viver sem o que morreu, a vida do grupo deve entrar na normalidade. Convém lembrar que a morte do outro é a pré-figuração da morte de si próprio e como esta simbolização é assustadora, logo a vida deve seguir em frente, dentro de um rearranjo possível. Para Miguilim Mãitina era a pessoa com quem sempre podia falar do Dito e chorarem juntos. É dela a idéia: "Escondido, escolheram um recanto, debaixo do jenipapeiro, ali abriram um buraco, cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito, furtaram, para enterrar, com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus guardados, trouxe uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas, pedrinhas amarradas com embira fina; [...] Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos. Tudo se enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com terra, depois foram buscar as pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão, apertadas, remarcando o lugar; [...] Era mesma coisa se o Dito estivesse depositado ali, e não no cemiteriozinho, longe, no Terentém." (p.106) A cumplicidade entre eles é protetora. Só eles compartilhavam o segredo. Dito agora está presente. Se o milagre de reviver Dito não acontece, pelo menos há um lugar para ele no Mutum, escondido pelo ritual de Mãitina. O rito reuniu Dito, Miguilim e Mãitina, protegendo-os da ausência, do desamparo, da crueldade da morte, e das relações hostis entre os outros vivos. Quando o desejado não tem chance de chegar e há o desencanto pela espera inútil, quando se acredita que as energias foram gastas em vão... pode surgir o inesperado...O homem que chega a cavalo é um doutor. "Migulim, espia aqui: quantos dedos da minha mão você está enxergando? [...] Este nosso rapazinho tem a vista curta." (p.130) Ele faz Miguilim experimentar os óculos que tira do próprio rosto. "Miguilim olhou. Nem podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, [...] Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinha menores [...] O doutor ia levar Miguilim para mandar fazer uns óculos, menores, adequados para o tamanho dele. .Miguilim, mais uma vez olhou para tudo o que pôde, o gado, os matos, os buritizais... Ah! O Mutum era bonito! Despedidas... "Um soluçozinho veio. O Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. (p.133) Outra partida, agora diversa de quantas tinha ele vivido, também dolorosa. "Toda saudade é uma espécie de velhice." (Rosa, Grande Sertão... p.40) Miguilim, já não era apenas um menininho sofrendo a orfandade, a indigência, e o abandono. "Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande." (Rosa, Grande Sertão..., p.422.)
As citações do texto de Guimarães Rosa são da edição 9a da Nova Fronteira, 1984

Ana Lucia Magela - Educadora, com doutorado focado em sócio-antropologia do quotidiano, desenvolvido na FEUSP/Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien (Paris V- Sorbonne).

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