Estando às voltas com o tema de nossa III Jornada da EBP-SC “Felicidade pronta-entrega: felizes a qualquer preço?”, resolvi pôr em destaque trechos de uma entrevista concedida por Humberto Eco, publicada no jornal Folha de São Paulo, pelas interessantes colocações do filósofo e escritor italiano, a respeito da Felicidade.
"Humberto Eco é um homem quase feliz”, apresenta-o o jornalista, “um professor que desfruta a companhia de seus alunos e que agora, aos 76 anos, aposentado de suas múltiplas ocupações acadêmicas [...] continua a trabalhar ‘ainda mais do que antes’, dando aulas doutorais, escrevendo livros, [...] participando de congressos, lendo histórias em quadrinhos [...] e rindo como um garoto”. Esse homem quase feliz “canta, recita, conhece citações inteiras de memória, que se interessou antes dos outros pelas novas tecnologias, que as utilizou em seus trabalhos; [...] embora mantenha o celular quase sempre desligado, [...] usa o e-mail quase que obsessivamente, como se fosse o prolongamento de suas conversas”.
Para o escritor “quem se diz feliz o tempo inteiro é um cretino”, então, quando perguntado pelo jornalista sobre uma cena de seus 13 anos, em que, tocando trompete na Praça de Alexandria, transmitia felicidade, Eco responde: “aqui há duas coisas – aquele garoto e a felicidade. São diferentes, não podem coincidir. Não acredito na felicidade – estou lhe dizendo a verdade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou feliz por completo – sempre preciso fazer outra coisa”.
Porém ele não deixa de acreditar na existência de felicidades, no plural; para o escritor, tal como concebemos desde a psicanálise, elas (as felicidades) tem o tempo de um instante, são momentos; “elas duram dez segundos, ou meia hora”. Ele fornece vários exemplos de momentos felizes em sua vida; um deles é o do nascimento de seu filho, que reaparece como o menino de seu livro “O Pêndulo de Foucault”. Ainda que o coloque como exemplo de um momento feliz, o escritor não deixa de colocar em dúvida se realmente o foi ou se assim se tornou no momento em que o narrava, porque, para ele: “existem momentos de felicidade quando você consegue expressar alguma coisa que lhe deixa contente. [...] enquanto contava sobre aquele menino, eu estava feliz porque acredito que a vida serve apenas para recordar nossa própria infância”, ainda que advirta estar informado ser esta uma afirmação ‘reacionária’.
Freud (2) utiliza-se de um ditado popular para estabelecer a relação entre o infantil e o adulto: “a psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a amnésia infantil do homem”. Machado de Assis utiliza o mesmo dito popular, em seu livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (3). Nesta linha segue Humberto Eco, estabelecendo uma relação direta entre as recordações de infância e a felicidade do homem e confessa que recuperar tais recordações talvez seja a razão pela qual escreve. “Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de minha infância é um momento de felicidade, mas isso não quer dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade. A infância e a adolescência são períodos muito tristes. As crianças são seres muito infelizes. Talvez eu, enquanto tocava trompete, com medo de que fosse a última vez em que tocaria aquele instrumento, tenha sido um menino infeliz” (4).
Ao criticar o curso civilizatório atual, que torna tudo obsoleto no momento seguinte, Eco dá como exemplo o fato de ‘nenhuma biblioteca científica americana citar livros de mais de cinco anos atrás’; também faz côro à importância dada por Freud ao passado sobre o presente, quando constata que há uma perda na relação dos sujeitos com o passado, e que isso se dá numa tal velocidade, cujo calibre talvez torne impossível a adaptação da psicologia humana. Teme o autor quanto à perda de memória, ao dizer que “a abundância de informação sobre o presente não [...] permite refletir sobre o passado, [...] essa abundância é uma perda e não um ganho”, pois para ele o que existe é, sobretudo, a abundância da mesma informação. “A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe mais alma, você é um animal. Se você bate a cabeça [...] e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma”.
É desde essa perspectiva, da importância da memória para a subjetividade, que Humberto Eco, ainda que tenha se mostrado pessimista quanto à existência de felicidade(s) na infância e adolescência, ressalta o bonito que ocorre ao envelhecer: é que “recordamos de uma multiplicidade de coisas da infância que tinham sido esquecidas”. Nesta auto-análise, considera-se muito otimista em sua velhice, pois “quanto mais envelheço mais recordações tenho de minha infância”
Ao ser perguntado pontualmente sobre o que o faz feliz, responde: “Não sei. Eu já disse que não acredito nisso, mas, enfim, fico feliz quando encontro um livro que estava procurando havia muito tempo. Quando o compro e o tenho, olho para ele e me sinto feliz. Mas a sensação acaba ali. Enquanto a infelicidade é o que me provoca o fato de não ter este ou aquele livro. A verdadeira felicidade é a inquietude. É sair à caça, não matar o pássaro”.
Assim, por finalizar, vale à pena lembrar que uma das ‘receitas’ contemporâneas para que o “homem seja feliz”, que alia saber da ciência e interesse de mercado, dirige-se para a propagação desenfreada do consumo de antidepressivos, ansiolíticos e ‘anti-inquietantes’ nas administrações generalizadas de Ritalina. A ideologia reinante, que coloca a felicidade na ordem de um imperativo, também propõe a terapia pela palavra; o grande problema é que nestes casos costumam ser indicadas as Terapias Cognitivos Comportamentais, como as únicas possíveis coadjuvantes aos sujeitos, já um tanto adormecidos pelas drogas. Neste caso, o historicizar-se pela fala, o consentir com o inconsciente e o trabalho que possibilita a localização e a construção de um saber sobre os afetos cristalizados nos sintomas, tal como propõe a psicanálise, não está presente. O fundamental posto é que o sujeito ‘deve ser feliz’, sendo tristezas e sintomas elementos que atrapalham este programa, devendo ser eliminados como perturbação da vida ‘normal’, sem que nada se possa aprender com eles.
"Humberto Eco é um homem quase feliz”, apresenta-o o jornalista, “um professor que desfruta a companhia de seus alunos e que agora, aos 76 anos, aposentado de suas múltiplas ocupações acadêmicas [...] continua a trabalhar ‘ainda mais do que antes’, dando aulas doutorais, escrevendo livros, [...] participando de congressos, lendo histórias em quadrinhos [...] e rindo como um garoto”. Esse homem quase feliz “canta, recita, conhece citações inteiras de memória, que se interessou antes dos outros pelas novas tecnologias, que as utilizou em seus trabalhos; [...] embora mantenha o celular quase sempre desligado, [...] usa o e-mail quase que obsessivamente, como se fosse o prolongamento de suas conversas”.
Para o escritor “quem se diz feliz o tempo inteiro é um cretino”, então, quando perguntado pelo jornalista sobre uma cena de seus 13 anos, em que, tocando trompete na Praça de Alexandria, transmitia felicidade, Eco responde: “aqui há duas coisas – aquele garoto e a felicidade. São diferentes, não podem coincidir. Não acredito na felicidade – estou lhe dizendo a verdade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou feliz por completo – sempre preciso fazer outra coisa”.
Porém ele não deixa de acreditar na existência de felicidades, no plural; para o escritor, tal como concebemos desde a psicanálise, elas (as felicidades) tem o tempo de um instante, são momentos; “elas duram dez segundos, ou meia hora”. Ele fornece vários exemplos de momentos felizes em sua vida; um deles é o do nascimento de seu filho, que reaparece como o menino de seu livro “O Pêndulo de Foucault”. Ainda que o coloque como exemplo de um momento feliz, o escritor não deixa de colocar em dúvida se realmente o foi ou se assim se tornou no momento em que o narrava, porque, para ele: “existem momentos de felicidade quando você consegue expressar alguma coisa que lhe deixa contente. [...] enquanto contava sobre aquele menino, eu estava feliz porque acredito que a vida serve apenas para recordar nossa própria infância”, ainda que advirta estar informado ser esta uma afirmação ‘reacionária’.
Freud (2) utiliza-se de um ditado popular para estabelecer a relação entre o infantil e o adulto: “a psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a amnésia infantil do homem”. Machado de Assis utiliza o mesmo dito popular, em seu livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (3). Nesta linha segue Humberto Eco, estabelecendo uma relação direta entre as recordações de infância e a felicidade do homem e confessa que recuperar tais recordações talvez seja a razão pela qual escreve. “Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de minha infância é um momento de felicidade, mas isso não quer dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade. A infância e a adolescência são períodos muito tristes. As crianças são seres muito infelizes. Talvez eu, enquanto tocava trompete, com medo de que fosse a última vez em que tocaria aquele instrumento, tenha sido um menino infeliz” (4).
Ao criticar o curso civilizatório atual, que torna tudo obsoleto no momento seguinte, Eco dá como exemplo o fato de ‘nenhuma biblioteca científica americana citar livros de mais de cinco anos atrás’; também faz côro à importância dada por Freud ao passado sobre o presente, quando constata que há uma perda na relação dos sujeitos com o passado, e que isso se dá numa tal velocidade, cujo calibre talvez torne impossível a adaptação da psicologia humana. Teme o autor quanto à perda de memória, ao dizer que “a abundância de informação sobre o presente não [...] permite refletir sobre o passado, [...] essa abundância é uma perda e não um ganho”, pois para ele o que existe é, sobretudo, a abundância da mesma informação. “A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe mais alma, você é um animal. Se você bate a cabeça [...] e perde a memória, converte-se num vegetal. Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma”.
É desde essa perspectiva, da importância da memória para a subjetividade, que Humberto Eco, ainda que tenha se mostrado pessimista quanto à existência de felicidade(s) na infância e adolescência, ressalta o bonito que ocorre ao envelhecer: é que “recordamos de uma multiplicidade de coisas da infância que tinham sido esquecidas”. Nesta auto-análise, considera-se muito otimista em sua velhice, pois “quanto mais envelheço mais recordações tenho de minha infância”
Ao ser perguntado pontualmente sobre o que o faz feliz, responde: “Não sei. Eu já disse que não acredito nisso, mas, enfim, fico feliz quando encontro um livro que estava procurando havia muito tempo. Quando o compro e o tenho, olho para ele e me sinto feliz. Mas a sensação acaba ali. Enquanto a infelicidade é o que me provoca o fato de não ter este ou aquele livro. A verdadeira felicidade é a inquietude. É sair à caça, não matar o pássaro”.
Assim, por finalizar, vale à pena lembrar que uma das ‘receitas’ contemporâneas para que o “homem seja feliz”, que alia saber da ciência e interesse de mercado, dirige-se para a propagação desenfreada do consumo de antidepressivos, ansiolíticos e ‘anti-inquietantes’ nas administrações generalizadas de Ritalina. A ideologia reinante, que coloca a felicidade na ordem de um imperativo, também propõe a terapia pela palavra; o grande problema é que nestes casos costumam ser indicadas as Terapias Cognitivos Comportamentais, como as únicas possíveis coadjuvantes aos sujeitos, já um tanto adormecidos pelas drogas. Neste caso, o historicizar-se pela fala, o consentir com o inconsciente e o trabalho que possibilita a localização e a construção de um saber sobre os afetos cristalizados nos sintomas, tal como propõe a psicanálise, não está presente. O fundamental posto é que o sujeito ‘deve ser feliz’, sendo tristezas e sintomas elementos que atrapalham este programa, devendo ser eliminados como perturbação da vida ‘normal’, sem que nada se possa aprender com eles.
Laureci Nunes/Membro da EBP e AMP, Diretora de Cartéis e Intercâmbio da Seção SC e co-responsável pela comissão de Divulgação da III Jornada da Seção SC(ef).
(1) ECO, H., frase extraída de entrevista concedida ao jornalista Juan Cruz, publicada no Jornal Folha de SP em 11.05.08. Humberto Eco é lingüista e escritor italiano, professor aposentado da universidade de Bolonha, autor, entre outros de: “O nome da Rosa”, “Apocalípticos e Integrados” e o mais recente “Quase a Mesma Coisa”, sobre tradução.
(2) FREUD, S., “O Interesse científico da psicanálise”, parte II, íten D, Edição Standart das Obras Psicológicas Completas (1913), Vol. XIII, edição digital.
(3) ASSIS, M. “ O Menino é pai do homem”, in: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. XI. “CRESCI; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas de que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino”. Mencionado, oralmente, por Luis Carlos Cancellier de Olivo.
(4) A cena mencionada, refere-se ao momento em que tocava trompete para os “partigiani” (movimento anti-facista), Juan Cruz, Jornal Folha de São Paulo, idem.
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