terça-feira, 8 de julho de 2008

Miguilim e a angústia da morte

O centenário de nascimento do escritor GUIMARÃES ROSA, comemorado em 27/06/2008, enseja esta reflexão sobre a angústia da morte vivida por uma criança e poderá incitar desdobramentos no campo da psicanálise. O conto “Campo Geral” é a estória de “Um certo Miguilim”, menininho de oito anos, mirrado, franzino, que morava com a família longe ...pra lá da “Vereda–do-Frango-d’Água”... lá no Mutum. Miguilim tem sempre medo do desamparo: “Ser menino a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma ” era frágil e temeroso de tudo, na família só ele estava doente e sabia que ia morrer. A tristeza de Miguilim não é com a suposta doença, nem com a sua morte próxima. Claro que ele tem medo do nunca-mais, da irreversibilidade, do acordo com Deus ser esquecido... A melancolia de Miguilim é, todavia, com a vida. “Ele bebia um golinho de velhice”. (p.71) Diante da rudeza, da incompreensão dos adultos de seu grupo primário, ele se sente desamparado e a morte pode se colocar como uma forma de negociar com esta angústia. “uma liberdade interior que menospreza ou tenta usar de astúcia contra as violências externas é uma atitude que, embora um pouco romântica, não deixa de possuir o vestígio de uma certa grandeza, cujo aspecto trágico deve ser analisado”. (Maffesoli, 1984, p.88) Decidir que vai morrer, ter uma doença imaginária, negociar com Deus o melhor dia, são convicções que podem ser interpretadas como exercício de uma liberdade interior, sufocada pelas repressões e desencantamentos. É um respiradouro que Miguilim elabora para oxigenar a vidinha em hipóxia. “No trágico do cotidiano, uma mágoa discreta e imperceptível pode pesar com força no transcurso de uma vida, fazendo com o que chamamos de sabedoria não seja pura hipocrisia ou simples aquiescência. Ela é uma modéstia grandiosa que sabe ou sente que convém usar de astúcia para com a incoerência do social ou que é preciso negociar com as formas estranhas segregadas por esse social”. (Maffesoli, 1984,p. 90). A explicação da vida é sempre a posteri. As “correntes quentes do vivido” antecedem e dispensam teorizações. Pode-se encontrar algum alívio no ato de negociar com esta própria finitude. Encarar a morte, mesmo que fictícia, mesmo como um recurso imaginário, pode ser uma saída para a imposição mortífera, e retornar das águas do Estige, tendo enfrentado um limite, com um sentimento de gestão das pequenas e grandes mortes cotidianas. As fantasias de Miguelim são guiadas para a morte com medo, mas também como solução. Desde que a negociação se firmasse... e os dias escorriam... ele escondia sua certeza e continuava a se comportar como se nada houvesse. Queria que quando chegasse o dia tudo continuasse normal, cada um nos seus afazeres, mas os dias “não cabiam dentro do tempo.” (p.55) e ele conferia os sinais da doença: “salivava, queria saber se já sobrava o gosto de sangue!” (p.54) Temia que Deus se esquecesse do combinado! Uma profunda melancolia com a chegada do dia marcado: “Morria, ninguém não sentia que não tinha mais o Miguilim. Morria, como arterice de menino mau?” (p.57) Já é com saudade que procura reparar em tudo, para guardar na lembrança, como se já não mais existisse. É benevolente com os adultos... tudo tem um ar tristonho de despedida . A morte não é uma “coisa”, não é objeto e nem comporta nos discursos biológicos da ciência. Quando se tenta circunscrevê-la na linguagem, nada mais se está fazendo do que tentar bloquear a angústia do ser humano diante deste incompreensível. Ela se coloca como a alteridade absoluta. Como um eu pode experienciar o não-eu? Assim, só se vive a morte de outrem. Morrer não é um verbo que se conjuga na primeira pessoa do presente do indicativo. Por que Miguilim elaborou o imaginário de sua própria morte? Por que “carecia de pensar feito já fosse pessoa grande?” É de se estranhar que uma criança de 7 para 8 anos crie uma idealização da própria morte. Em geral, nesta fase da vida, uma criança experiencia a morte, mediada pela morte de um outro! Todavia, é preciso levar em conta o interessante processo de amadurecimento de Miguilim, sua sensibilidade exacerbada diante das mortes de bichos que os adultos empreendiam: Mesmo sem clara noção do que fosse morte, já a percebia como algo negativo, ligado à destruição, ao afastamento. Ele ia muito além das representações convencionais que os adultos faziam da morte e, particularmente, da insensibilidade deles para com outros viventes não humanos. Quando é de se esperar que a reprodução do processo de dureza da vida rural e da apropriação da noção de morte, se dê na interação com parceiros, onde o grupo familiar, primário, se põe em evidência, Miguilim toma um atalho, e elabora, talvez de modo canhestro, sua própria morte, “a morte que vem curar tudo.” (Áries, 1989, p.17) Esta concepção é somatizada nas dores físicas que Miguilim sente, no definhamento, enfim, na tristeza e na certeza da morte. Embora, ainda em tenra idade, ele demonstra um desencantamento para com os adultos que o cercam. Não tem clara consciência disto, até porque a imposição do respeito familiar e a censura religiosa não o permitiam. Mas não quer ser como eles quando for grande... Os adultos judiam, torturam, matam, provocam a fúria de Deus, abusam dos inofensivos e indefesos. A morte precoce pode ser um desligamento, uma saída. Ele tem noção de sua própria finitude – a sabedoria dos limites, percebe-se como um ser trágico: “é no momento em que tomo consciência de minha finitude que cada instante de minha vida se carrega de todo o peso do meu destino. Cada um dos meus atos se inscreve nele como uma peça nova de uma edificação irreversível que continua por toda a duração de minha existência, deixando-me cada vez com o gosto do inacabado”. (Thomas, 1978 p.24) Miguilim acompanha a sina do irmão mais novo, Dito, desde o acidente, com o corte no pé, o agravamento da doença, a agonia e a morte, sem possibilidade de acreditar no que se desenrola diante de seus olhos infantis. Já Dito percebe que está sendo conduzido ao fim inexorável: “’Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!... E o Dito quis rir para Miguilim. mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vierem, puxaram Miguilim de lá.” (p.100) Quando o embate entre vida e morte se afrouxa e abre espaço para que impere o fim, a desordem, Dito não é um ser humano desesperado. Ele percebe a sua terminalidade como um ser trágico, entregue ao seu destino, enquanto Miguilim encarna o drama; não acredita que a desordem triunfe, ela só pode ser transitória! Pode ser controlada!

As citações do texto de Guimarães Rosa são da edição 9a da Nova Fronteira, 1984
Ana Lucia Magela - Educadora, com doutorado focado em sócio-antropologia do quotidiano, desenvolvido na FEUSP/Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien (Paris V- Sorbonne).

Um comentário:

Anônimo disse...

Ana,
belíssimo texto. Me fez refletir sobre quantas vezes nós mesmos já não tivemos vontade de negociar a própria morte e fazer com que "a única certeza que temos na vida" ficasse mais clara e abrandasse nossos sofrimentos.

Todo o processo por que passa Miguilim é algo por demais profundo. Reforçado pela forma como Guimarães Rosa nos conduz pela narrativa, é quase um tapa na cara, tamanha a simplicidade carregada de honestidade.

Parabéns pela análise. Ficarei na expectativa pelas próximas.