O centenário de nascimento do escritor GUIMARÃES ROSA, comemorado em 27/06/2008, enseja esta reflexão sobre a angústia da morte vivida por uma criança e poderá incitar desdobramentos no campo da psicanálise. O conto “Campo Geral” é a estória de “Um certo Miguilim”, menininho de oito anos, mirrado, franzino, que morava com a família longe ...pra lá da “Vereda–do-Frango-d’Água”... lá no Mutum. Miguilim tem sempre medo do desamparo: “Ser menino a gente não valia para querer mandar coisa nenhuma ” era frágil e temeroso de tudo, na família só ele estava doente e sabia que ia morrer. A tristeza de Miguilim não é com a suposta doença, nem com a sua morte próxima. Claro que ele tem medo do nunca-mais, da irreversibilidade, do acordo com Deus ser esquecido... A melancolia de Miguilim é, todavia, com a vida. “Ele bebia um golinho de velhice”. (p.71) Diante da rudeza, da incompreensão dos adultos de seu grupo primário, ele se sente desamparado e a morte pode se colocar como uma forma de negociar com esta angústia. “uma liberdade interior que menospreza ou tenta usar de astúcia contra as violências externas é uma atitude que, embora um pouco romântica, não deixa de possuir o vestígio de uma certa grandeza, cujo aspecto trágico deve ser analisado”. (Maffesoli, 1984, p.88) Decidir que vai morrer, ter uma doença imaginária, negociar com Deus o melhor dia, são convicções que podem ser interpretadas como exercício de uma liberdade interior, sufocada pelas repressões e desencantamentos. É um respiradouro que Miguilim elabora para oxigenar a vidinha em hipóxia. “No trágico do cotidiano, uma mágoa discreta e imperceptível pode pesar com força no transcurso de uma vida, fazendo com o que chamamos de sabedoria não seja pura hipocrisia ou simples aquiescência. Ela é uma modéstia grandiosa que sabe ou sente que convém usar de astúcia para com a incoerência do social ou que é preciso negociar com as formas estranhas segregadas por esse social”. (Maffesoli, 1984,p. 90). A explicação da vida é sempre a posteri. As “correntes quentes do vivido” antecedem e dispensam teorizações. Pode-se encontrar algum alívio no ato de negociar com esta própria finitude. Encarar a morte, mesmo que fictícia, mesmo como um recurso imaginário, pode ser uma saída para a imposição mortífera, e retornar das águas do Estige, tendo enfrentado um limite, com um sentimento de gestão das pequenas e grandes mortes cotidianas. As fantasias de Miguelim são guiadas para a morte com medo, mas também como solução. Desde que a negociação se firmasse... e os dias escorriam... ele escondia sua certeza e continuava a se comportar como se nada houvesse. Queria que quando chegasse o dia tudo continuasse normal, cada um nos seus afazeres, mas os dias “não cabiam dentro do tempo.” (p.55) e ele conferia os sinais da doença: “salivava, queria saber se já sobrava o gosto de sangue!” (p.54) Temia que Deus se esquecesse do combinado! Uma profunda melancolia com a chegada do dia marcado: “Morria, ninguém não sentia que não tinha mais o Miguilim. Morria, como arterice de menino mau?” (p.57) Já é com saudade que procura reparar em tudo, para guardar na lembrança, como se já não mais existisse. É benevolente com os adultos... tudo tem um ar tristonho de despedida . A morte não é uma “coisa”, não é objeto e nem comporta nos discursos biológicos da ciência. Quando se tenta circunscrevê-la na linguagem, nada mais se está fazendo do que tentar bloquear a angústia do ser humano diante deste incompreensível. Ela se coloca como a alteridade absoluta. Como um eu pode experienciar o não-eu? Assim, só se vive a morte de outrem. Morrer não é um verbo que se conjuga na primeira pessoa do presente do indicativo. Por que Miguilim elaborou o imaginário de sua própria morte? Por que “carecia de pensar feito já fosse pessoa grande?” É de se estranhar que uma criança de 7 para 8 anos crie uma idealização da própria morte. Em geral, nesta fase da vida, uma criança experiencia a morte, mediada pela morte de um outro! Todavia, é preciso levar em conta o interessante processo de amadurecimento de Miguilim, sua sensibilidade exacerbada diante das mortes de bichos que os adultos empreendiam: Mesmo sem clara noção do que fosse morte, já a percebia como algo negativo, ligado à destruição, ao afastamento. Ele ia muito além das representações convencionais que os adultos faziam da morte e, particularmente, da insensibilidade deles para com outros viventes não humanos. Quando é de se esperar que a reprodução do processo de dureza da vida rural e da apropriação da noção de morte, se dê na interação com parceiros, onde o grupo familiar, primário, se põe em evidência, Miguilim toma um atalho, e elabora, talvez de modo canhestro, sua própria morte, “a morte que vem curar tudo.” (Áries, 1989, p.17) Esta concepção é somatizada nas dores físicas que Miguilim sente, no definhamento, enfim, na tristeza e na certeza da morte. Embora, ainda em tenra idade, ele demonstra um desencantamento para com os adultos que o cercam. Não tem clara consciência disto, até porque a imposição do respeito familiar e a censura religiosa não o permitiam. Mas não quer ser como eles quando for grande... Os adultos judiam, torturam, matam, provocam a fúria de Deus, abusam dos inofensivos e indefesos. A morte precoce pode ser um desligamento, uma saída. Ele tem noção de sua própria finitude – a sabedoria dos limites, percebe-se como um ser trágico: “é no momento em que tomo consciência de minha finitude que cada instante de minha vida se carrega de todo o peso do meu destino. Cada um dos meus atos se inscreve nele como uma peça nova de uma edificação irreversível que continua por toda a duração de minha existência, deixando-me cada vez com o gosto do inacabado”. (Thomas, 1978 p.24) Miguilim acompanha a sina do irmão mais novo, Dito, desde o acidente, com o corte no pé, o agravamento da doença, a agonia e a morte, sem possibilidade de acreditar no que se desenrola diante de seus olhos infantis. Já Dito percebe que está sendo conduzido ao fim inexorável: “’Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!... E o Dito quis rir para Miguilim. mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vierem, puxaram Miguilim de lá.” (p.100) Quando o embate entre vida e morte se afrouxa e abre espaço para que impere o fim, a desordem, Dito não é um ser humano desesperado. Ele percebe a sua terminalidade como um ser trágico, entregue ao seu destino, enquanto Miguilim encarna o drama; não acredita que a desordem triunfe, ela só pode ser transitória! Pode ser controlada!
As citações do texto de Guimarães Rosa são da edição 9a da Nova Fronteira, 1984
As citações do texto de Guimarães Rosa são da edição 9a da Nova Fronteira, 1984
Ana Lucia Magela - Educadora, com doutorado focado em sócio-antropologia do quotidiano, desenvolvido na FEUSP/Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien (Paris V- Sorbonne).
Um comentário:
Ana,
belíssimo texto. Me fez refletir sobre quantas vezes nós mesmos já não tivemos vontade de negociar a própria morte e fazer com que "a única certeza que temos na vida" ficasse mais clara e abrandasse nossos sofrimentos.
Todo o processo por que passa Miguilim é algo por demais profundo. Reforçado pela forma como Guimarães Rosa nos conduz pela narrativa, é quase um tapa na cara, tamanha a simplicidade carregada de honestidade.
Parabéns pela análise. Ficarei na expectativa pelas próximas.
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