O real foi apresentado por Miller como o segundo tema de uma série de três que começou com o da Ordem Simbólica. Trata-se de situar os efeitos na prática clínica, a partir desses dois registros, no contexto do século XXI, que está estruturado pelo discurso da ciência,pelo discurso capitalista além de um terceiro fator que é a combinação de ambos os discursos.
Miller apontou que se faz necessário esclarecer para nós mesmos as consequências do real no século XXI em relação às estruturas clínicas, na medida em que a nova ordem simbólica, que desvaloriza o fundamento angular que é o Nome do Pai, sacode a diferença entre neurose e psicose.
Ele considera que havia um tempo em que o real se chamava Natureza, tida como o mais elevado conceito de ordem, e que não causava surpresa. O real enquanto natureza tinha a função de Outro do Outro, como garantia mesma da ordem simbólica. Na medida em que natureza representava a conjunção do real e do simbólico, as estações, o espetáculo dos céus, os astros, eram usados como referência por Lacan para dizer que o real sempre retornava ao mesmo lugar. Tratava-se do tempo em que o Nome do Pai era a chave da ordem e a ordem humana deveria imitar a ordem natural.
Mesmo com a entrada de Deus na Criação a ordem segue em vigência, salienta Miller, lembrando dos esforços da Igreja para não tocar na ordem natural. No entanto, acrescenta, “este discurso antigo é admirável como causa perdida: todos nós sabemos que o real havia escapado da natureza, não bastava um Deus para resistir à irresistível mudança científica”; fez outra referência à Lacan, quando este disse que a causa de Deus era um triunfo, porque o real destacado da natureza é insuportável, daí a nostalgia ao objeto perdido.
Miller lembra que mesmo antes do discurso da ciência já havia um movimento que pensava tocar, controlar o real: a Magia. Com o significante encantação, a magia pretendia acalmar a natureza; via bruxaria ela fazia a natureza falar, enquanto a ciência a faz calar. Com a magia estava suposto haver um saber no real. Ele lembra também que Lacan chegou a se perguntar se a psicanálise não era um tipo de magia.
O saber científico desvela o real apresentando leis e previsões, extraindo um saber do real. A ciência faz um curto-circuito e apresenta um paradoxo em relação à fórmula de Lacan, em seu último ensino: o real é sem lei. Miller acrescenta que o capitalismo mais ciência ao se combinar fazem desaparecer a natureza; ocorre uma desvalorização do real, e desordenadamente se toca nele de todas as formas.
Lembrando que quando Lacan nos ensinou que o inconsciente era estruturado como uma linguagem, também o ensinou como uma lei, que apoiou-se em grafos, em ordenamento fálico, etc., mas, acrescentou Miller, uma nova dimensão se abriu com a concepção de alíngua: há lei da linguagem, mas não há leis para as línguas, estas estão cada qual, formadas por contingências. O inconsciente é uma elucubração de saber sobre o real. O real não tem sentido, os sentidos dados advém da elucubração fantasmática e a experiência analítica é para reduzir o real a desenhar-se como puro choque pulsional; pedaços oriundos do encontro entre a língua e o corpo, encontro contingente e que sempre parece perverso, um gozo sempre desviante do como deveria ser.
Ao finalizar Miller acrescenta que o último Lacan centrava-se sobre o real e que o real inventado por ele não é o mesmo real da ciência. Para Lacan o real é sem lei, sem regra, sem lógica e a psicanálise é uma elucubração sobre ele. Pontuando que o inconsciente transferencial é uma defesa contra o real e que, nossa clínica, para adentrar no século XXI deve centrar-se sobre o inconsciente real, Miller considera que se faz então necessário uma redefinição sobre o desejo do analista.
Dadas as coordenadas introduzidas por Jacques Alain Miller, nossa comunidade analítica se debruçará nos próximos dois anos sobre o tema da “Desordem do real no século XXI”, buscando tirar consequências clínicas e epistêmicas.
Este é o novo e instigante convite ao trabalho!
Laureci Nunes - EBP/AMP
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