Acabo de assistir uma entrevista com o músico Guinga, que responde à pergunta sobre o que é compor. Docemente, como é seu jeito, diz mais ou menos assim:
Há aquele relâmpago da inspiração.
E há o suor do capinador.
Criar é capinar, capinar, capinar, atrás daquele relâmpago.
Na continuidade da entrevista, Guinga diz que já compôs no banheiro, fazendo cocô. E que ao ouvir um trecho de Wagner, vomitou, vomitou. Era uma ária chamada Descida ao Inferno.
Penso eu: suor, visão, excrementos. Fazer ALGO com o que se perde. (a caixa alta de ALGO saiu sozinha, não apertei a tecla shift. Melhor respeitar a contingência e deixar assim).
O bem junto ao mal. O maniqueísmo da nossa cultura não dá conta deste imbrincamento. De que não é que seja o princípio do prazer que regule nossos atos, atendendo a uma lógica de que claro que procuramos sempre nosso bem, que claro que não faríamos algo se não fosse em nome de nossa preservação, da aprovação, de receber amor... Todas as boas intenções que acreditamos que nos orientam. Até que depararíamos com um mais além do princípio do prazer, o vício, o fazer algo que não segue a ordem do bem estar. É pior que isso. Quando vemos, estamos cá e lá. Quando se vê, já ultrapassamos a fronteira. Bem, não há fronteira. Quando vemos, já estamos entregues ao vício, ao demônio, ao inferno. Ao gozo. Estranha extração de satisfação de algo que supostamente nos faz tão mal.
Mistura que está além de qualquer divisão bom ou ruim, que pode nos servir para pensar o momento da nossa cultura. Há uma concentração de poder e riqueza grandes, mas também há pulverização, há possibilidade de acesso. Há cada vez mais dificuldade de ser artista reconhecido se não for por força de um bom espaço na Globo, mas também há uma facilidade de acesso à tecnologia, com produtos mais ao alcance de consumir, há a possibilidade de divulgação, não massiva, pela internet, por exemplo, ou sei lá o que se possa cavar de espaço, de vitrine.
Sem cair no “o que ganhamos, o que perdemos” nesta era da economia de mercado, onde tudo pode e onde o mercado é quem regula, desde que transformado num objeto consumível, há espaço. Arcar com a singularidade, com o modo exclusivo e particular de cada um ser no mundo, nunca foi tarefa fácil. Nesses tempos, bem pouca coisa é proibida, mas o dar conta de se expressar, de se sentir livre, de colocar sua marca no mundo, continua sendo um desafio, que às vezes duvidamos que seja por culpa do Outro, que nos impede. Onde cada vez há menos proibição pode ficar mais evidente o horror de que a felicidade como harmônica é impossível.
(Este texto se originou a partir de uma discussão do Grupo Psicanálise e Cultura: Do Mal-Estar à Sublimação)
Soraya Santos Valerim (EBP-SC)
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