quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Elena – desejo de invenção, por Diego Cervelin


Em tempo: por mais que todo mundo tente nos forçar a acreditar que assim deve ser, nenhum documento formulado por mão humana se resolve na imediatez de um jogo de show and tell. Nem tudo o que mostramos se diz, de fato, com as palavras. Mas nesse hiato de senti-do, há algo que fala mesmo sem ser compreendido, há que algo faz ressoar um grito silencioso, mas suficientemente capaz de entrar agudo no ouvido. E dói. Isto dói e, por isto mesmo, assim como o cachorrinho azul que Elena deu a Petra, às vezes, também nós só chacoalhamos e temos os olhos tristes. Afinal, como alguém pode suportar o horror das letras pretas assepticamente encadeadas sobre o fundo branco ao dizerem – com um prosaísmo cruel e não menos cortante – que um coração pesa... trezentos gramas? Como alguém pode conviver com a batida extinta desse mesmo coração que até pouco tempo havia sido capaz de conduzir a lua em uma dança evanescente pela imensidão do céu? 

Em “Autobiografia como des-figuração”, texto que Paul de Man publicou, em 1984, pela editora da mesma universidade aonde Petra Costa viria a estudar anos depois, o teórico nos diz que, antes de o registro biográfico funcionar como um gênero, ele trata de uma figura de leitura ou de entendimento que se perfaz através de uma estrutura eminentemente espe-cular[1]. Em Elena, essa estrutura vem pelo menos em três tempos que se espelham e se entre-cruzam como em uma luneta mágica onde as experiências, as fantasias e os fantasmas se em-baralham: a mãe que queria ser atriz; Elena que queria mais – e queria ser estrela –; Petra que é atriz – e quer aprender a dançar com a estrela. Mas nesse espelhismo das experiências, nesse entrecruzamento das fantasias e nesse embaralhamento dos fantasmas, o que as imagens apre-sentam e de fato desdobram são as marcas da perda, da falta, da ausência. “O interesse da autobiografia, portanto, não está na revelação de um conhecimento confiável de si mesmo – ela não o faz – e sim na demonstração, de modo surpreendente, da impossibilidade de fecha-mento e de totalização [...] de todos [os] sistemas [...] conformados por substituições tropoló-gicas”[2].

É precisamente isto que está em jogo no percurso de Elena: a impossibilidade de apre-ender um todo. E por mais que os corpos procurem obliterar, numa ânsia dolorosa, o apare-cimento da ferida, algo escapa à tentativa de controle ao mesmo tempo em que isto também deixa escapar algo. Mais uma vez, três tempos, três espelhos: Elena falando “agora eu me sinto gorda e vazia”; Petra atuando obsessivamente um sem número de rituais enquanto procura evitar o nome e o motivo da sua verdadeira tristeza; e a mãe, como se quisesse tomar algo ou alguém, cruzando os punhos e as mãos abertas ou crispadas sobre o peito justamente quando fala da angústia e da culpa que faz a cabeça pegar fogo. 

Elena, o filme, fala da impossibilidade de escapar da ferida. Elena é uma “memória inconsolável feita de pedra e de sombra”. E num instante próximo à reaparição da dança com a lua, aprofundando o silêncio que pontua – assim como o punctum barthesiano[3] – o esvaeci-mento da voz e do corpo que lhe servia de suporte, a mãe, a mesma mãe que sempre achou as filhas parecidas e até mesmo confundia seus nomes, põe em cena uma frase crucial: it hurts my feelings – “isto me machuca muito”, mas, além, isto fere os meus sentimentos; isto fere os meus sentidos. E, mesmo assim, formulando seus cortes e montagens, Elena, o filme, mostra como um coração pode conter o peso e a leveza de um universo – é isto que traz seu aspecto dilacerante e delicado. 

Em tempo: é isto que se aprende com a ferida: “pouco a pouco, as dores viram água, viram memória” de onde tudo nasce e onde tudo dança. Elena, dando tempo ao tempo, faz pensar nas pulsações de Um sopro de vida que, conforme as palavras usadas por Clarice Lispector, começam com a consideração de que “isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina”[4]. Dançando no ar, na água ou na rua, o it se mostra capaz de impulsionar a um esforço de invenção, a um esforço de convívio com aquilo que vem junto precisamente com a emergência de uma perda, de uma falta, de uma ausência cravada na própria carne. Dando tempo ao tempo, Elena faz pensar que, na transfiguração das imagens, “a invenção do hoje é o [...] único meio de instaurar o futuro”[5]. Ou então, nos termos dados por Clarice Lispector à Água viva: “o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra 

[1] Publicado em Modern Language Notes, n. 94 (1979) e em The rhetoric of romanticism. Nova York: Colum-bia University Press, 1984, pp. 67-81. Cf. Man, Paul de. “Autobiografia como des-figuração”. Tradução de Joca Wolff.  Em: Sopro. Panfleto político-cultural, n. 71, maio de 2012, Ilha de Santa Catarina, p. 04. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n71pdf.html
[2] Ibidem.
[3] Cf. Barthes, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46: “Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete à idéia de pontuação [...] pois o puntum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum [...] é esse acaso que [...] me punge”.
[4] Lispector, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 13.
[5] Idem. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 12.

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