segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Quarto Boletim da VIII Jornada da EBP-SC

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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

"Rendez-vous chez Lacan", por Flávia Cera

Na última sexta feira, dia 13, Flávia Cera comentou o documentário de Gérard Miller, "Rendez-vous chez Lacan".
Segue abaixo o comentário:

Uma das definições mais bonitas da psicanálise feita por Jacques Lacan em Meu Ensino é que ela é uma chance, uma chance de voltar a partir. Acho que esta definição ilustra bem o percurso analítico que os analisantes de Lacan testemunham no documentário. Uma mudança sutil, mas uma mudança. É o que mostra o depoimento de Di Ciaccia: continuo sendo a mesma coisa. Duvidava antes e duvido agora. Di Ciaccia era padre, hoje não mais. Éric Laurent, por exemplo, disse que o que faltava era um rumo, o desejo de unificar as contradições. Vejam que não houve uma alteração das contradições, o princípio pulsional por excelência, mas um percurso para saber fazer com elas. Para voltar a partir. Um efeito parecido encontramos na fala de Agnès Aflalo quando ela fala da energia para o trabalho e que a análise tinha feito com que ela tivesse mais energia ainda, que ela liberou o desejo, portanto, a vida. Ou nas palavras de Di Ciaccia: um corte entre o ideal e o que era uma paixão. Uma inscrição do possível. Um corte entre o horror e amor, no caso de Suzanne Hommel, que com um gesto de Lacan de lhe tocar a face, pôde re-significar, em parte, um sofrimento intenso, a Gestapo, e torná-lo também “geste à peau”. Liberando, desta mortificação, um traço de vida. Trata-se da perda e do saber. 

Fica bastante evidente no filme que para saber é preciso ceder. Aí entra a dimensão do dinheiro na análise. Mas o que trata o dinheiro? Ele não é uma relação comercial, um contrato entre as partes fixados por valores de mercado. É, ao contrário, a intrusão de outra economia, a economia libidinal, e, portanto, só pode ser decidido no caso a caso. Attié fez análise de graça por um tempo, como relata no filme. A gratuidade desta análise é interessante. Ele diz: eu era sincero. E podemos ler, pensando em Freud, que nada é mais caro que a doença e a estupidez. Abrir mão desta posição onde se goza em nome da elaboração de um saber é bastante caro. Há de se estar disposto, “ser sincero”, nas palavras de Attié. Daí que o preço da análise varie podendo passar, inclusive, pela gratuidade. Porque é preciso também ceder em gozo. O dinheiro entra nessa equação como um significante da perda, da cessão. Aflalo conta que Lacan estipulou um preço altíssimo, que nunca tinha andado com tanto dinheiro na carteira, mas que ele fez a ressalva de que não seria este o preço em todas as sessões. Mahjoub diz que Lacan quando define um preço exorbitante, diante do seu susto, a responde dizendo: dê-me o que tiver. Ela volta e constata que ele é o analista certo para ela, mas que não esse dinheiro para pagar. Ele lhe devolve: dê-me o que quiser. Uma mudança sutil. Entre o ter e o querer. Entre a acumulação o ter, e o gasto, o querer. E, me parece, que Laurent ilustra muito bem quando fala da “metida de mão na carteira” e interpreta esse gesto de uma forma muito interessante: “Lacan queria provocar o interesse em algo além dos seus interesses óbvios”. Para além do ter, mais perto do querer, ou melhor, do desejar.

Lacan definiu o desejo do analista como o desejo de obter a diferença absoluta. Vejam que não é o querer bem do analisante chegando a colocar o analista na posição de inumano. Os depoimentos nos mostram que a diferença já esta ali. Neste percurso o que fazemos, é tornarmo-nos os “personagens da nossa própria história”.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Noites de Biblioteca EBP-SC - Resenha da exibição e debate do filme Elena, de Petra Costa – Por Laureci Nunes e Monique Bez

Ocorreu, no dia 03 de setembro de 2013, no Centro Cultural Badesc em Florianópolis, a exibição do filme Elena, promovida pela EBP-SC – atividade Una das bibliotecas de nossa Escola. Foi uma concorrida sessão de cinema, que deixou muito gente de fora, pois os cinquenta lugares da sala foram rapidamente ocupados.

A exibição da película foi seguida dos comentários dos convidados: as psicanalistas Soraya Valerim e Jussara Bado, e do mestre em Literatura Diego Cervelin; na sequência ocorreu amplo e instigante debate, coordenado por Laureci Nunes, psicanalista e diretora de biblioteca.

Os espelhismos entre as três mulheres e a forma como cada uma foi atravessada pelo vazio vertiginoso foi o ponto de destaque comum aos três convidados. Soraya Valerim iniciou as considerações apontando que Elena, o filme, é um documentário que tem a riqueza de ser um filme dentro do filme, com pedaços de memórias, registros, filmagens, escritos. Foi concebido para fazer de Elena a protagonista, no caminho da realização de um sonho, fazer cinema, mas é Petra, irmã e diretora, quem consegue realizá-lo de fato. Considera que Petra se constituiu especularmente através de Elena, por quem era filmada em muitos momentos de sua infância, e que em Petra o medo do encontro, da fusão só se desfez muitos anos depois, após esta ultrapassar a idade da irmã, quando o espelho quebra. Já sobre Elena ressalta que essa alienou-se na mãe e ali ficou, diante do espelho em que foi desenhada como angústia. Para contornar o vazio de sentido ante a dor, Elena, o filme, põe a falar no limite possível. Conclui que fazer cinema é montagem e corte e é isso que Petra faz: monta para fazer e existir, revivendo Elena para poder enfim dela se separar.

Jussara Bado destaca que o filme começa com Petra contando o sonho, no qual ela se confunde com Elena; lembra que Petra Costa fala desse sonho perturbador em entrevista realizada em junho de 2009. Nele, diz Petra, eu não sabia quem morria, se Elena ou eu. No documentário Petra diz que sua mãe sempre lhe disse que ela podia morar em qualquer lugar do mundo menos em NY, e que podia escolher qualquer profissão menos a de atriz. Jussara considera que esse dito da mãe tomou o valor de um oráculo para Petra, algo que que ela jamais esqueceu. Isso determinou seu caminho, desvios e percalços, fazendo com que dedicasse sua existência para verificá-lo e torná-lo verdadeiro. Considera que o filme se desenvolve mostrando esses efeitos surpreendentes e impressionantes da palavra sobre a vida de um sujeito. Lembra que desde Freud acreditamos nos efeitos da palavra sobre o corpo, e que a descoberta de Freud se ordena em torno de algo que o sujeito não pode nomear. Elena comia, engordava, mas falava de um vazio que continuava. Através de palavras e atos tentava dar conta do que não fazia sentido em sua existência. Elena se depara com o indizível, com o inassimilável pelo significante e desemboca no pior, o suicídio. Já Petra faz do indizível um mistério a ser decifrado. Para a comentadora, “podemos pensar no filme como uma construção, uma trama imaginária e simbólica, tecida como um véu frente ao inominável e ao impossível de suportar do que se revelava como o destino da irmã e que poderia ser o seu. Petra se misturou aí, teceu e desfez nós, até que se separou da irmã e apropriou-se de um destino próprio e singular”. 

Diego Cervelin iniciou sua reflexão marcando que “nem tudo o que mostramos se diz, de fato, com as palavras. Mas que nesse hiato de sentido, há algo que fala mesmo sem ser compreendido, há algo que faz ressoar um grito silencioso, mas suficientemente capaz de entrar agudo no ouvido. E dói”. Ele se perguntou: “afinal, como alguém pode suportar o horror das letras pretas assepticamente encadeadas sobre o fundo branco ao dizerem – com um prosaísmo cruel e não menos cortante – que um coração pesa... trezentos gramas? Como alguém pode conviver com a batida extinta desse mesmo coração que até pouco tempo havia sido capaz de conduzir a lua em uma dança evanescente pela imensidão do céu”? Desde a literatura Diego trouxe referências para pensar o recurso da autobiografia, citando Paul Man no texto Autobiografia como desfiguração (1984): antes do registro biográfico funcionar como um gênero, ele trata de uma figura de leitura ou de entendimento que se perfaz através de uma estrutura eminentemente especular[1]. Diego acrescenta que “nesse espelhismo das experiências, nesse entrecruzamento das fantasias e nesse embaralhamento dos fantasmas, o que as imagens apresentam e de fato desdobram são as marcas da perda, da falta, da ausência”. Por isso usa a referência e Man também para situar que mais do que a tentativa de conhecimento confiável de si mesmo, o que a autobiografia demonstra é essa impossibilidade de fechamento e totalização dos sistemas. Citando uma frase do filme “Elena é feita de pedra e sombra”, Diego Cervelin referiu-se ao punctum barthesiano[2] (mencionado por Lacan no seminário 11), relacionando-o também ao silêncio do desvanecimento da voz e corpo da mãe de Petra, numa fala em que aquela situa sua dor dilacerante. Cervelin foi levado à lembrar-se também de Clarice Lispector em Um sopro de vida “a invenção do hoje é o [...] único meio de instaurar o futuro”[3] e também em Água Viva “o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante”[4]. Para ele o filme tem aspecto dilacerante e delicado.

A partir dessas falas o debate seguiu, incluindo outras questões: a identificação que unia as três mulheres e o excessivo do gozo feminino, que teve como contraponto a pouca expressividade de figuras masculinas, também não passou batido o fato de que a depressão de Elena se apresenta no momento da separação dos pais e que o aparecimento daquele americano (seu pai) foi o que fez contensão à depressão materna. Também houve a pontuação de que Petra se salva quando começa a procurar a irmã fora dela mesma, sendo essa a marca da efetiva separação, que finaliza um longuíssimo trabalho de luto. Neste ponto foi consenso que esse momento de corte (buscar as pegadas de Elena em NY) permitiu a Petra constituir Elena para além do mito. A atuação no teatro foi lembrada como possibilidade de repetição para a elaboração e passagem de fases, pois é uma repetição com diferença. Também o fato de o filme enxertar poesia o tempo todo, através das imagens, das pequenas frases, da música, num contexto de pura angústia, como uma tentativa de furar o duro (da morte, da dor, do real mesmo) com o delicado. Destacou-se também a forma não moralista como o roteiro lida com a verdade e o ficcional, mostrando a tênue passagem, reversibilidade entre um e outro.

Por último, não passou despercebido a sociedade das imagens, o mundo visto através das telas, tanto por Elena como pela sociedade americana, que já desde muitos anos atrás, que filmava tudo, assim como o ideal do cinema americano, hollywoodiano, para as três mulheres, em seus sonhos de serem atrizes. 

Por Laureci Nunes e Monique Bez

em 09 setembro de 2013


[1] Publicado em Modern Language Notes, n. 94 (1979) e em The rhetoric of romanticism. Nova York: Colum-bia University Press, 1984, pp. 67-81. Cf. Man, Paul de. “Autobiografia como des-figuração”. Tradução de Joca Wolff. Em: Sopro. Panfleto político-cultural, n. 71, maio de 2012, Ilha de Santa Catarina, p. 04. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n71pdf.html 


[2] Cf. Barthes, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46: “Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete à idéia de pontuação [...] pois o puntum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum [...] é esse acaso que [...] me punge”. 


[3] Lispector, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 13. 


[4] Idem. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 12. 


Elena, por Soraya Valerim


Documentário com a riqueza de um filme dentro de um filme. Ou, o mais perto que Petra - diretora, roteirista, atriz, personagem - conseguiu chegar disto. Com pedaços de memórias, com pedaços de registros, de filmagens, de escritos. Transformando estes pedaços em divinos detalhes, carregados de afeto, não para construir um todo, mas para abrigar as diversas partes de Elena, dela, da mãe.

Um filme que Petra faz para fazer de Elena - sua irmã - a protagonista, a estrela de um filme e, assim, realizar seu sonho. Agora Elena pode ganhar o mundo, o que tanto queria, brilhando nas telas mundo afora. E Petra realizou o sonho de Elena ao realizar o seu próprio sonho, de ser diretora e atriz; de fazer cinema.

É também um filme que trabalha personagens dentro de outras. A mistura das três mulheres. Dos percalços que as três passam para se transformarem em mulher, da entrada no mundo adulto, sexuado.

Exceto que Elena, que, tal qual A pequena sereia, não consegue.

O filme inicia com a fala de Petra: ”Sonhei com você. Quando vejo sou eu. Me vejo tanto nas suas palavras que começo a me perder em você.” Aí a diretora já apresenta o filme: que trabalhará essa mistura. Petra se encontra na outra, nessa outra que cuidou dela, que a enfeitou, que a preparou para ser atriz, dançarina, cantora. Elena, a quem Petra admirava. Elena quer, com sua câmera e espelho, oferecer seu olhar para que Petra se constitua. No filme vemos, também, Elena vendo-se na mãe. Sentindo a sua dor. A dor daquilo que diante de um espelho consegue desenhar- desenha sua tristeza. Desenho este que reaparecerá para as filhas nos momentos que tentam representar suas angústias.

É somente quando ultrapassa a idade de Elena que Petra pode ir além dela, Elena. Mas não sem ela, pois é via o filme sobre Elena. É um filme da força de Petra para ir além de onde Elena conseguiu ir. Quando ultrapassa a idade de Elena é que o medo de seguir os passos dela pode perder força.

Penso que este filme mostra como pela arte pode-se contornar o vazio. Diante da dor, Petra se dispõe a falar o que é possível dela; a se aproximar, a simbolizar o que seja possível sobre a morte, isso para o qual não há significação que dê conta. É um filme da coragem de Petra - e de sua mãe, que se dispõe a ir junto mexer nessas feridas e baús- para fazer algo com o vazio, sem tapá-lo, mas fazendo algo com ele. Trabalho de luto e de expurgo dos fantasmas. Nas palavras de Petra: “enceno a nossa morte para poder viver”.

Fazer cinema é montagem e corte. E é isso que Petra faz: monta para fazer existir; revive Elena para poder enfim cortar, se separar dela.

Soraya Valerim, 3 de setembro de 2013.


ELENA, por Jussara D Leite

O filme começa com Petra relatando um sonho onde ela se confunde com Elena. O sonho, segundo Freud, é a via régia para o inconsciente. Numa entrevista, Petra diz que teve esse sonho em julho de 2009 e que foi muito angustiante por ela não saber se era ela ou Elena quem morria.

Petra continua sua narrativa de abertura: “Nossa mãe sempre me disse: que eu podia morar em qualquer lugar do mundo, menos Nova York. Que eu podia escolher qualquer profissão, menos ser atriz.”. Da maneira como Petra dispõe sua narrativa relatando o sonho, de entrada, e a seguir mencionando um dito da mãe, me fez pensar que esse dito da mãe tomou o valor de um oráculo para ela, algo que lhe foi dito e que ela não mais esqueceu, que se inscreveu de forma insistente e que, de alguma forma, determinou seus caminhos, desvios, escolhas. Como um destino a ser cumprido.

Quando uma pessoa procura uma análise, o analista escuta em suas palavras vários enunciados essenciais que vão cingindo um enunciado mais fundamental. Nesse percurso de uma análise, o paciente descobre que ele dedicou sua existência a verificar esse DITO FUNDAMENTAL, seja para confirmá-lo, seja porque se enveredou no sentido de desmenti-lo. O paciente pode responder à questão de até que ponto esse dito marcou sua vida determinando suas escolhas. Ou seja, até que ponto os caminhos e vicissitudes de sua vida são redutíveis ao efeito dessa marca significante. Parece-me que o filme se desenvolve por aí, ao redor dos efeitos da inscrição de uma palavra dita na história de um sujeito, dos efeitos surpreendentes e impressionantes em sua vida.

Petra conta (entrevista disponível no You Tube – Programa Andante – Elena) que, quando estava com cerca de dezoito anos, fazendo um work shop no Teatro da Vertigem, teve a tarefa de montar uma cena a partir de uma frase: “LIVRO DA VIDA”. Diz que, como não tinha orientação religiosa, foi em busca de seu diário e, num baú de livros antigos, achou um diário de Elena. Começou a ler e teve a sensação de se encontrar com “algo como um destino, um destino temeroso. Parecia que eu tinha achado um livro sobre o meu destino e tive muito medo de que fosse acontecer comigo o que aconteceu com Elena”. Petra continua: “E o filme é um pouco a investigação desse medo”. Petra se encontra com um enorme material produzido por Elena: mais de vinte horas de cartas gravadas em fitas cassete, filmes e escritos. Diz que se identifica com a irmã e se confunde aí. E Petra, a partir desse material, se pergunta: “Como será que esse tempo ficou no seu corpo, na sua memória?”.

E nós podemos perguntar:

- O quê a linguagem determina no sujeito? Como isso acontece?

- O quê a verdade do inconsciente deve à palavra, ao significante?

Sabemos, com Freud e Lacan, que o “mais profundo afeto é regido pela linguagem”. (ESCRITOS, p.367). Acreditamos nos efeitos da fala sobre o corpo. A descoberta de Freud se ordena em torno de algo que o sujeito não consegue nomear e que o reenvia a um vazio. Vazio que Elena toca e alude quando fala que está gorda, que come muito e que o vazio continua. Palavras e atos tentando dar conta do que não fazia sentido em sua existência. Fala de sua decadência: “agora vou me degradar e escorrer por esse ralo”. Elena, que na sua infância viveu a clandestinidade dos pais, chega a sonhar com um OUTRO LUGAR. Philippe Lacadèe fala do adolescente fugitivo que sonha com um outro lugar como forma de fuga ou errância. O OUTRO LUGAR, que atrai os jovens, aparece então como uma possibilidade de nomear o inominável do lugar subjetivo que o jovem habita, uma forma de se separar ou evitar o encontro com o gozo em demasia que perturba o jovem que não pode enuncia-lo. Elena é tomada por esse indizível, inassimilável pelo significante, e desemboca no pior.

Já Petra, faz do indizível, um mistério. Faz um percurso na direção de um mistério a ser decifrado. Segue decidida em busca dessa revelação. Revelação que se impõe de tal forma, toma uma dimensão tão grande, que ela se “alielena”. Petra diz: “Elena tomou uma dimensão tão grande que eu fui desaparecendo”. E ela segue, persegue por um tempo o rastro da ausência da irmã, repetindo, de maneira inconsolável, os ditos marcados em sua memória.

Podemos pensar o filme como uma construção, uma trama imaginária e simbólica tecida como um véu frente ao inominável, ao impossível de suportar do que se revelava como o destino da irmã e também o seu. Petra se engendra aí, tece e desfaz nós até que se separa da irmã e se apropria de um destino seu, singular. Para terminar, Petra diz ao final do filme: “Você é a minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra, e é dela que tudo nasce e dança.”.

Bem, “a análise é um modo novo e singular de gozar da linguagem e de fazer brotar dela alguma coisa rara!”.




Elena – desejo de invenção, por Diego Cervelin


Em tempo: por mais que todo mundo tente nos forçar a acreditar que assim deve ser, nenhum documento formulado por mão humana se resolve na imediatez de um jogo de show and tell. Nem tudo o que mostramos se diz, de fato, com as palavras. Mas nesse hiato de senti-do, há algo que fala mesmo sem ser compreendido, há que algo faz ressoar um grito silencioso, mas suficientemente capaz de entrar agudo no ouvido. E dói. Isto dói e, por isto mesmo, assim como o cachorrinho azul que Elena deu a Petra, às vezes, também nós só chacoalhamos e temos os olhos tristes. Afinal, como alguém pode suportar o horror das letras pretas assepticamente encadeadas sobre o fundo branco ao dizerem – com um prosaísmo cruel e não menos cortante – que um coração pesa... trezentos gramas? Como alguém pode conviver com a batida extinta desse mesmo coração que até pouco tempo havia sido capaz de conduzir a lua em uma dança evanescente pela imensidão do céu? 

Em “Autobiografia como des-figuração”, texto que Paul de Man publicou, em 1984, pela editora da mesma universidade aonde Petra Costa viria a estudar anos depois, o teórico nos diz que, antes de o registro biográfico funcionar como um gênero, ele trata de uma figura de leitura ou de entendimento que se perfaz através de uma estrutura eminentemente espe-cular[1]. Em Elena, essa estrutura vem pelo menos em três tempos que se espelham e se entre-cruzam como em uma luneta mágica onde as experiências, as fantasias e os fantasmas se em-baralham: a mãe que queria ser atriz; Elena que queria mais – e queria ser estrela –; Petra que é atriz – e quer aprender a dançar com a estrela. Mas nesse espelhismo das experiências, nesse entrecruzamento das fantasias e nesse embaralhamento dos fantasmas, o que as imagens apre-sentam e de fato desdobram são as marcas da perda, da falta, da ausência. “O interesse da autobiografia, portanto, não está na revelação de um conhecimento confiável de si mesmo – ela não o faz – e sim na demonstração, de modo surpreendente, da impossibilidade de fecha-mento e de totalização [...] de todos [os] sistemas [...] conformados por substituições tropoló-gicas”[2].

É precisamente isto que está em jogo no percurso de Elena: a impossibilidade de apre-ender um todo. E por mais que os corpos procurem obliterar, numa ânsia dolorosa, o apare-cimento da ferida, algo escapa à tentativa de controle ao mesmo tempo em que isto também deixa escapar algo. Mais uma vez, três tempos, três espelhos: Elena falando “agora eu me sinto gorda e vazia”; Petra atuando obsessivamente um sem número de rituais enquanto procura evitar o nome e o motivo da sua verdadeira tristeza; e a mãe, como se quisesse tomar algo ou alguém, cruzando os punhos e as mãos abertas ou crispadas sobre o peito justamente quando fala da angústia e da culpa que faz a cabeça pegar fogo. 

Elena, o filme, fala da impossibilidade de escapar da ferida. Elena é uma “memória inconsolável feita de pedra e de sombra”. E num instante próximo à reaparição da dança com a lua, aprofundando o silêncio que pontua – assim como o punctum barthesiano[3] – o esvaeci-mento da voz e do corpo que lhe servia de suporte, a mãe, a mesma mãe que sempre achou as filhas parecidas e até mesmo confundia seus nomes, põe em cena uma frase crucial: it hurts my feelings – “isto me machuca muito”, mas, além, isto fere os meus sentimentos; isto fere os meus sentidos. E, mesmo assim, formulando seus cortes e montagens, Elena, o filme, mostra como um coração pode conter o peso e a leveza de um universo – é isto que traz seu aspecto dilacerante e delicado. 

Em tempo: é isto que se aprende com a ferida: “pouco a pouco, as dores viram água, viram memória” de onde tudo nasce e onde tudo dança. Elena, dando tempo ao tempo, faz pensar nas pulsações de Um sopro de vida que, conforme as palavras usadas por Clarice Lispector, começam com a consideração de que “isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina”[4]. Dançando no ar, na água ou na rua, o it se mostra capaz de impulsionar a um esforço de invenção, a um esforço de convívio com aquilo que vem junto precisamente com a emergência de uma perda, de uma falta, de uma ausência cravada na própria carne. Dando tempo ao tempo, Elena faz pensar que, na transfiguração das imagens, “a invenção do hoje é o [...] único meio de instaurar o futuro”[5]. Ou então, nos termos dados por Clarice Lispector à Água viva: “o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra 

[1] Publicado em Modern Language Notes, n. 94 (1979) e em The rhetoric of romanticism. Nova York: Colum-bia University Press, 1984, pp. 67-81. Cf. Man, Paul de. “Autobiografia como des-figuração”. Tradução de Joca Wolff.  Em: Sopro. Panfleto político-cultural, n. 71, maio de 2012, Ilha de Santa Catarina, p. 04. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n71pdf.html
[2] Ibidem.
[3] Cf. Barthes, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46: “Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete à idéia de pontuação [...] pois o puntum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum [...] é esse acaso que [...] me punge”.
[4] Lispector, Clarice. Um sopro de vida (Pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 13.
[5] Idem. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 12.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Terceiro Boletim da VIII Jornada da EBP-SC

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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Nos dias 11 e 12 de outubro realizaremos a VIII Jornada da EBP-SC, sob o título "...e afinal, o corpo fala?" Para impulsionar a reflexão e discussão do tema, bem como a produção dos trabalhos, estamos convidando para as atividades preparatórias. A proposta é que os pequenos textos que constam na bibliografia sejam previamente lidos, pois eles impulsionarão o trabalho entre todos os presentes.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

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