segunda-feira, 30 de abril de 2012

Psicanálise vai ao Cinema: S T E L L A Comentário por Marise Pinto.


Um filme autobiográfico, segundo a diretora Sylvie Verheyde, cujo cotidiano adverso de uma pré-adolescente nos é apresentado com realismo e ao mesmo tempo uma certa poética. Apesar de tudo parecer conspirar para que Stella ceda ao destino familiar, o filme nos surpreende com uma aposta na força que tem a amizade, no rol das relações humanas que se encontram reveladas neste filme. 
Como a própria personagem nos diz, ela se dá conta desde muito cedo que ela não é como as outras crianças, que sua diferença está além de sua classe social, da herança de pais sem estudo ou de procedência de uma outra língua e cultura – como ela revela a respeito de seu pai, um ch’miti, isto é, fala a língua do Norte da França, da cidade de Pas de Calais, o patois - o que poderia colocá-la em desvantagem com relação a seus iguais. Não sendo isto tudo suficiente, ela convive com bêbados, marginais, homens violentos e mulheres sem muito pudor ou amor próprio. Seus próprios pais, donos do bar, estão sempre numa corda bamba entre ser como alguns destes “habitués” que frequentam o bar e o esforço em manterem-se na diferença que os faz sustentarem o seu negócio.
Talvez essa seja a característica que mais influenciou na decisão que Stella tem que tomar em sua vida. A vida lhe dá uma chance, e embora de imediato ela não saiba como aproveitá-la, ela reconhece sua sorte quando encontra alguém que lhe abre possibilidades diversas as que até então lhe eram conhecidas. 
Contrariando todas as expectativas quanto ao que ela poderá vir a ser, tendo como experiência a vida neste bar, Stella comprova que seu desejo a salva de sucumbir ao infortúnio que a esperava. Não há determinismo, herança ou qualquer outro fator com o qual ela não tenha se enfrentado. Inclusive o amor desmedido de um dos “hóspedes” do hotel.
Verdade que Stella sempre esteve cercada por situações que contrariam o que se poderia chamar de uma vida ideal para o desenvolvimento de uma criança, mas também é verdade que a seu modo, ela foi cercada de amor. A reação por nada conivente de sua mãe as suas notas escolares bem como ao seu comportamento violento, este Não materno, a coloca de frente com sua realidade, e deixa claro a ela que não será por sua mãe ou por seu pai que ela obterá algo a mais em sua vida. Sua mãe lhe diz com todas as letras que a ela a escola não lhe fez falta. Que ela chegou até aí, com o bar. O resto, o que Stella terá na vida será por seu próprio esforço. 
Podemos fazer um paralelo entre uma criança quando nasce, sem nada querer além de ser alimentada e cuidada por alguém, geralmente sua mãe, e o momento em que ela terá que se esforçar para ir além de ser este objetinho amoroso ou não, de sua mãe. De novo, é sua mãe quem vai lhe apontar esta necessidade, fazendo ver ao bebê que ele já não é tudo para ela. Algo do desejo materno retira a criança do lugar de objeto exclusivo de amor da mãe e a lança como ser desejante no mundo. A este momento, Freud chamou de “uma nova ação psíquica”, o que salva a criança de permanecer no lugar exclusivo do amor de sua mãe, mas de qualquer maneira é preciso que uma mãe deseje isso para seu filho e isso a mãe de Stella demonstra a ela com seu não.
Podemos pensar, ainda, que o filme é revelador também de uma ausência dos pais como figuras parentais, como podemos observar na contemporaneidade, em que os filhos muitas vezes são obrigados a tomar o lugar dos pais na constelação familiar. Neste sentido, Stella, cúmplice de seu pai ao ver que ele é enganado por sua mãe, um dia toma a decisão que seu pai não tem coragem de tomar. Pega o rifle que seu pai a ensinou a manejar e coloca para fora do bar o amante de sua mãe. Em uma outra cena sua mãe desabafa com Stella o que ela diz ser sua falta de habilidade em lidar com as contingências da vida. Stella como filha, os ensina a serem pais revelando aí uma verdade: não há pai ou mãe prêt-à porter.
Considero muito importante neste filme o que a personagem principal nos diz: enquanto cerceada em seu mundo limitado aos frequentadores do bar, sua experiência lhe dizia que ela não podia confiar em ninguém, até ela encontrar sua amiga, Gladys, que também é procedente de uma outra língua e cultura, que lhe dá a oportunidade de não se sentir mais só. É Gladys quem lhe descortina um mundo diferente, em que a música e a literatura são os instrumentos de sua liberdade. Vale lembrar quando Stella vai comprar seu primeiro livro, como se estivesse cometendo um ato infracional, e sua corrida para o mundo que ela descobre a partir da leitura. A imagem é muito sugestiva...
Sua descoberta do outro sexo, seu encontro com o sexo se dá quando um dos hóspedes, que presencia sua transformação de menina em pré-adolescente, tenta impingir a ela o seu amor perverso e isto a convoca à posição feminina, que ela já começa a ensaiar com a maquiagem, as roupas, a leitura de Marguerite Duras e o primeiro namorado. 
Gostaria de terminar este comentário com uma cena que me pareceu de muita ternura: seu primeiro amor, o desempregado e chefe de gang, Alain Bernard, que ela tinha como um anjo, a convida para jogar fliperama e ela, absorta em seus afazeres responde que não. Ele ao perceber que ela já não é mais a garotinha cuja amizade lhe dava um lugar especial que o diferenciava dos outros frequentadores do bar, despede-se dizendo: “Vou sentir saudades...”

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