terça-feira, 1 de novembro de 2011

Amar uma mulher com orifícios não é para todos

"Querido diário

Hoje topei com alguns conhecidos meus
Me dão bom-dia, cheios de carinho
Dizem para eu ter muita luz, ficar com Deus
Eles têm pena de eu viver sozinho
Hoje a cidade acordou toda em contramão
Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço
De volta a casa, na rua recolhi um cão
Que de hora em hora me arranca um pedaço

Hoje pensei em ter religião
De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício
Por uma estátua ter adoração
Amar uma mulher sem orifício

Hoje afinal conheci o amor
E era o amor uma obscura trama
Não bato nela nem com uma flor
Mas se ela chora, desejo me inflama

Hoje o inimigo veio me espreitar
Armou tocaia lá na curva do rio
Trouxe um porrete a mó de me quebrar
Mas eu não quebro porque sou macio, viu"


Esta música, de autoria de Chico Buarque, me instigou a pensar algumas coisas. Primeiro gostei imenso da letra, que me parece muito psicanalítica. No seu mais íntimo, pois é o que escrevemos no “querido diário”, ele nos fala de sua solidão. Essa imagem do cão recolhido na rua, abandonado, que ele recolhe depois que pessoas queridas lhe dizem estar com pena dele estar só, um cão que arranca pedaços, é uma bela forma de falar do nosso desamparo primordial. O pensamento subseqüente de poder crer no sublime, na religião, em algum culto que faz sacrifício com a ovelha, adorar uma imagem, amar uma mulher sem orifício, assexuada, pura, é sua tentativa de banir o furo do mundo, para poder arrancar o dele do peito.
Entre o horror do furo da solidão e o sublime, tensionado nesse lugar, conhece o amor trama obscura, que não é o amor romântico. O amor que Chico fala é o amor que a psicanálise fala, uma trama obscura onde desejo e gozo se espreitam. Achei interessante, pois temos de um lado a mulher sem orifício, esta dos românticos, a mulher impossível, assexuada, e do outro a mulher orifício, puro dejeto, a prostituta. Me parece que o que o Chico fala, assim como a psicanálise, é na construção de uma ligação entre ambas, que acontece exatamente pelo furo, que começa no peito do homem, que daí suporta o impossível feminino, podendo viver, não o amor romântico, o que tentaria “tapar” o furo de forma consistente, mas aquele que Lacan fala, “Amar é dar o que não se tem”. Este só faz um “velzinho” no furo, porque já está avisado da importância tanto do semblante quanto do próprio furo. Também, como homem moderno que é, ele não quebra exatamente porque é macio, e não duro e inflexível. Não quebra porque pode suportar sua própria divisão. Consegue amar uma mulher com orifícios.
A música é linda, ao invés de quebrar a imagem do Chico como o poeta que sabe falar como ninguém das mulheres, anexou o poeta que sabe falar bem também dos homens e sua solidão. Enfim, o poeta que sabe falar muito bem da condição humana, a da falta eterna que nos move!

Cinthia Busato - Psicanalista, correspondente da EBP-SC

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