sábado, 18 de junho de 2011

ECOS DO ENAPOL: O BURACO E A LUZ

O V ENAPOL, realizado nos dias 11 e 12 de junho contou com mais de 1500 participantes e demonstrou ser uma ocasião de trabalho conjunto das três escolas que constituem a AMP-América: NEL, EOL e EBP.

As atividades começaram na terça-feira que antecedeu esse final de semana, com uma conferência de Éric Laurent, proferida na Academia Brasileira de Letras, com o título: “Além da felicidade, a época do mais!”. Nela, Laurent tratou de evidenciar que por trás das paixões e dos delírios familiares que rondam as crianças, tema que tratou no Brasil em 2008, o que se encobre são as paixões mortíferas da contemporaneidade, nas quais a criança entra como objeto a ser reparado pelas neurociências. A criança como “capital mais precioso”, numa retomada da expressão de Stalin, se vê ameaçada em nosso mundo, produzindo sintomas que enlouquecem as normas, encerradas em seus quartos, conectadas aos gadgets, frutos de técnicas de reprodução assistida. À questão de qual o lugar do psicanalista, Laurent nos orienta que é a de tomar a medida do enlouquecimento que produz a criança e fazer inconsistir essa paixão mortífera que está aí implicada.

Após a conferência houve o lançamento do livro “Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana”, que recolhe conferências de Laurent no Brasil.

Na quarta-feira, um interessante debate em torno do lançamento do livro de J-A Miller: “Perspectivas dos Escritos e dos Outros Escritos de Lacan” teve lugar na livraria da Travessa com Leonardo Gorostiza, Judith Miller e Angelina Harari. Essa publicação é a oportunidade para os leitores brasileiros de terem contato com o trabalho desenvolvido por Miller em seu seminário de orientação lacaniana, sobretudo em “Coisas de fineza em psicanálise”.

Na quinta-feira, Éric Laurent nos brindou com outra conferência proferida no Colégio dos cirurgiões, e dessa vez o tema foi o autismo. Laurent parte da pergunta: “de quê o autismo é o nome?” Ele retomou diferentes produções escritas de sujeitos autistas, assim como relatos de trabalhos de analistas em instituição com crianças autistas, para abordar a resposta particular que esses sujeitos encontraram para tratar o insuportável em que viviam. O que fica evidente é uma relação particular que os autistas têm com a língua. Para eles, o S1 não se borra, uma palavra pronunciada pode provocar-lhes horror. Seu corpo é um corpo que goza de si mesmo e é invadido pelo excesso, numa dimensão do real onde nada falta. A solução desses sujeitos passa pela relação com a letra, as listas, os objetos de caráter particular. Laurent nos diz que diante dessa “forclusão do buraco”, desse amor morto, devemos buscar desfazer um modo específico de relação com a letra, para diversificá-la. É a busca de produzir, em suas belas palavras, “a instância da letra tronco” como tratamento do acontecimento de corpo para esses sujeitos.

Já podíamos encontrar nessa conferência o viés através do qual Eric Laurent desenvolveu o tema do V Enapol: A saúde para todos, não sem a loucura de cada um.

Na sexta-feira nos reunimos nas jornadas do Cien e na conversação dos Institutos do Brasil, onde a discussão frutífera foi animada por Leonardo Gorostiza. No intervalo do almoço foi exibido o filme “La première séance”, de Gerard Miller. Durante todo o Enapol pudemos assistir a vários clips relacionados ao tema do encontro, projetados em telas distribuídas pelos saguões.

Na sexta-feira à noite nos encontramos numa festa deliciosa no Clube dos macacos, local maravilhoso no meio da mata, com muitas caipirinhas, samba, alegria e direito a havaianas com a logomarca do encontro.

Assim, no sábado, quando o encontro oficialmente começou, o trabalho já estava avançado. Pela manhã tivemos seções plenárias com a conferência de Éric Laurent intitulada: “Pluralidade das razões subjetivas”. Laurent parte da recusa da ideia de que o que temos em comum é um funcionamento psíquico. O sujeito não é constituído pelo que aprendeu, mas por aquilo que escutou e pela maneira que foi tocado pela palavra. Para as neurociências, a loucura de cada um se reduz a um desfuncionamento. Passando pelas formulações de Antonio Damasio, Laurent nos diz que a experiência analítica funciona a partir do apagamento da consciência no momento do gozo. O êxtase do gozo demonstra a existência em nós de algo que é fora do corpo e não funciona no modelo dos traços. O primeiro Lacan definiu a memória como um sistema de buracos que são essenciais. No texto “A equivocação do sujeito suposto saber”, ele apresenta um inconsciente centrado nesses buracos e diz que ele não é um recordar-se do que se sabe. É por isso que em lugar de usar o verbo se souvenir, Lacan usa se rappeler, para fazer ressoar na língua que recordar é chamar-se a si mesmo a partir de um significante. É se fazer presente diante de um significante, que pode ser tomado como um ponto de enganche.

Nessa sequencia, o inconsciente vai ser tomado por Lacan como uma luz que não dá lugar a uma sombra. Sou visto por essa luz e não posso me representar e é isso que Lacan chama em “Lituraterra” de buracos na língua. Não é só o buraco no Outro, S(A barrado), mas o buraco que está dentro da minha experiência e me atravessa. O que se encontra aqui enfatizado é que há o buraco central da experiência do encontro com o gozo. Cada um fala sua própria língua, inventada na particularidade do encontro falho com o gozo e nesse esforço de nomear-se a si mesmo, constrói um nome próprio, tal como fez Joyce. O riverum de Finnegans Wake é um esforço constante que cada sujeito, no final da análise, pode encontrar: seu esforço particular de fazer equivocar a língua produzindo a nomeação paradoxal que é o sinthoma. A nomeação desse buraco do gozo é impossível, mas esse impossível é tratado pelo esforço de fazer entrar na língua um elemento estranho que vai continuar a sê-lo, trabalho infindável. Assim, temos na experiência analítica o buraco que tem forma, o objeto a, e o buraco que não tem forma, do qual fala Miller e que coaduna com a ideia do inconsciente luz.

Encontramos no centro da elaboração de Laurent a questão do buraco, aquele mesmo que ele escolheu deixar no meio da sala ao final de sua conferência sobre o autismo.

No intervalo do almoço houve o lançamento do livro cuidadoso do V Enapol, onde textos de diversos colegas tratam do tema de maneira interessante e diversa.

As mesas de trabalho durante o sábado à tarde e no domingo de manhã foram cheias de conversa e a interlocução prévia dos trabalhos demonstrou ser uma maneira de trabalho que gerou bons frutos.

A mesa dos AEs foi, como sempre, emocionante e cheia de ensinamentos. Ali batia o coração da Escola. Os comentários de Éric Laurent buscaram extrair a questão do destino do gozo quando ele não está mais condenado ao contrabando, a estar às escondidas na fantasia. A fantasia pode ser tomada numa fórmula, ao passo que o acontecimento de corpo se passa em um corpo particular. É o viés do “ultrepasse”, tal como Miller vem nos indicando a ler o passe, que trata do novo investimento pulsional, mais além do anonimato que encontramos na frase da fantasia, numa topologia que não se localiza no espaço do quadro, e que não conta com o apoio da imagem.

A falta de nossos colegas do sul e da Argentina se fez sentir, apesar da aventura de vários deles para driblar as intempéries. Eles demonstraram do forte desejo e da transferência de trabalho que sustentam nossos encontros.

Agradecemos a todos os que trabalharam tanto para esse encontro. A presença dos inúmeros jovens analistas demonstra a renovação de nossas Escolas, presentes em nossas cidades e em nossa atualidade.

Agradecemos também aos nossos convidados, Judith Miller, Leonardo Gorostiza e Éric Laurent pelo trabalho e pela presença viva entre nós.

Nos esperam o congresso da AMP em abril de 2012, em Buenos Aires, e o XIX Encontro Brasileiro que ocorrerá em novembro de 2012, em Salvador, cujo  tema instigante foi anunciado por seu diretor, MarceloVeras, no final do Encontro:  “Mulheres de hoje – figuras do feminino no discurso analítico”.

Cristina Drummond

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