Na última sexta feira, dia 13, Flávia Cera comentou o documentário de Gérard Miller, "Rendez-vous chez Lacan".
Segue abaixo o comentário:
Uma das definições mais bonitas da psicanálise feita por Jacques Lacan em Meu Ensino é que ela é uma chance, uma chance de voltar a partir. Acho que esta definição ilustra bem o percurso analítico que os analisantes de Lacan testemunham no documentário. Uma mudança sutil, mas uma mudança. É o que mostra o depoimento de Di Ciaccia: continuo sendo a mesma coisa. Duvidava antes e duvido agora. Di Ciaccia era padre, hoje não mais. Éric Laurent, por exemplo, disse que o que faltava era um rumo, o desejo de unificar as contradições. Vejam que não houve uma alteração das contradições, o princípio pulsional por excelência, mas um percurso para saber fazer com elas. Para voltar a partir. Um efeito parecido encontramos na fala de Agnès Aflalo quando ela fala da energia para o trabalho e que a análise tinha feito com que ela tivesse mais energia ainda, que ela liberou o desejo, portanto, a vida. Ou nas palavras de Di Ciaccia: um corte entre o ideal e o que era uma paixão. Uma inscrição do possível. Um corte entre o horror e amor, no caso de Suzanne Hommel, que com um gesto de Lacan de lhe tocar a face, pôde re-significar, em parte, um sofrimento intenso, a Gestapo, e torná-lo também “geste à peau”. Liberando, desta mortificação, um traço de vida. Trata-se da perda e do saber.
Fica bastante evidente no filme que para saber é preciso ceder. Aí entra a dimensão do dinheiro na análise. Mas o que trata o dinheiro? Ele não é uma relação comercial, um contrato entre as partes fixados por valores de mercado. É, ao contrário, a intrusão de outra economia, a economia libidinal, e, portanto, só pode ser decidido no caso a caso. Attié fez análise de graça por um tempo, como relata no filme. A gratuidade desta análise é interessante. Ele diz: eu era sincero. E podemos ler, pensando em Freud, que nada é mais caro que a doença e a estupidez. Abrir mão desta posição onde se goza em nome da elaboração de um saber é bastante caro. Há de se estar disposto, “ser sincero”, nas palavras de Attié. Daí que o preço da análise varie podendo passar, inclusive, pela gratuidade. Porque é preciso também ceder em gozo. O dinheiro entra nessa equação como um significante da perda, da cessão. Aflalo conta que Lacan estipulou um preço altíssimo, que nunca tinha andado com tanto dinheiro na carteira, mas que ele fez a ressalva de que não seria este o preço em todas as sessões. Mahjoub diz que Lacan quando define um preço exorbitante, diante do seu susto, a responde dizendo: dê-me o que tiver. Ela volta e constata que ele é o analista certo para ela, mas que não esse dinheiro para pagar. Ele lhe devolve: dê-me o que quiser. Uma mudança sutil. Entre o ter e o querer. Entre a acumulação o ter, e o gasto, o querer. E, me parece, que Laurent ilustra muito bem quando fala da “metida de mão na carteira” e interpreta esse gesto de uma forma muito interessante: “Lacan queria provocar o interesse em algo além dos seus interesses óbvios”. Para além do ter, mais perto do querer, ou melhor, do desejar.
Lacan definiu o desejo do analista como o desejo de obter a diferença absoluta. Vejam que não é o querer bem do analisante chegando a colocar o analista na posição de inumano. Os depoimentos nos mostram que a diferença já esta ali. Neste percurso o que fazemos, é tornarmo-nos os “personagens da nossa própria história”.
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