A matéria intitulada “Um mundo particular”, publicada na Folha de São Paulo de 17 de março de 2013, fundamentada na experiência de quem vive “na carne”, como se diz, a questão do autismo, reflete bem a discussão atual sobre como e quem está apto a tratar essas crianças e adolescentes que, por muito tempo, ficaram confinadas em tratamentos rígidos e inúteis. A vida de uma criança autista e de seus pais não é fácil, além de lidarem com as dificuldades inerentes ao problema em si, têm que se deparar com uma gama de preconceitos e desconhecimentos dos que estão em seu entorno. Luiz Fernando Vianna, como pai, não teve a sorte de um bom encontro com um psicanalista que, antes de tudo, precisa estar atento à angústia que suscita aos pais a notícia de um diagnóstico de autismo. Tão pouco teve sorte com outro profissional de outra abordagem.
Assinalo, entretanto que, independentemente dessa querela, a psicanálise é um corpo teórico que avançou muito, desde os estragos que os pós-freudianos fizeram nos ensinamentos de Freud. Com Jacques Lacan, ela pode ser revisitada, criticada e ampliada e isso, porque ela carrega em seu bojo, graças ao seu “pai”, uma revisão constante de sua prática e dos preconceitos que podem advir de um psicanalista. Os psicanalistas, pelo menos os lacanianos, aprendem que não só o cotidiano de sua clínica, mas também as questões do mundo contemporâneo fazem buraco no seu fazer e na teoria que o fundamenta. Essa discussão lançada pelos pais das crianças diagnosticadas de autismo tem sido muito bem recebida pela comunidade psicanalítica lacaniana, tanto no Brasil e outros países como na França, porque permite que se questione a clínica e o saber-fazer da psicanálise. Também para nós, psicanalistas, conceitos universalisantes como “mãe geladeira” e “fortaleza vazia” continuam atrapalhando muito nossa prática, porque culpabilizam antes de ouvir e dar um destino singular a cada caso particular.
Se um documentário como “O muro” foi duramente criticado pelos psicanalistas envolvidos no mesmo, talvez seja porque se sentiram indignados sim, de verem seus nomes envolvidos numa crítica injustamente feita a uma prática que, ao contrário de muitas, porta em seu seio mesmo a possibilidade que todo ser humano tem de advir como sujeito no mundo, de ter a sua singularidade subjetiva respeitada e acolhida e de ser tratado como alguém que tem desejos e gostos próprios. O tratamento psicanalítico visa o singular do sujeito autista que, como qualquer sujeito, tem que inventar sua forma particular de fazer laços sociais, assim como fizeram Carly e Temple. Não se trata de uma adaptação comportamental ao meio em que vivem, mas de encontrarem um savoir y faire, como costumamos dizer, com o seu impedimento. Carly e Temple são exemplos de que, para além de suas capacidades cognitivas e afetivas, o sujeito é sempre responsável pelas vicissitudes de sua vida, qualquer que seja o diagnóstico que receba ou sua história de vida. A psicanálise ensina a todos os sujeitos, e os pais também são sujeitos, que ser responsável é muito diferente de ser culpado e que, na verdade, é justamente o oposto.
Eneida Medeiros Santos - Coordenadora do Pandorga - Núcleo de pesquisa e investigação clínica da psicanálise com crianças
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