terça-feira, 3 de abril de 2012

Comentário sobre My Blueberry Nights, de Wong Kar-Wai, Por Daphne Fayad.


                My Blueberry Nights, título original do filme, nos conduz a uma linha de associações e representações que vai se traçando ao longo da história. Elizabeth, faminta por explicações para o fim do amor, nutre esperanças de que Jeremy a alimente. Jeremy, aceitando este papel, responde sobre a torta de blueberry: sempre sobra no final da noite, mas não é culpa dela, ninguém a deseja...  É nesta empreitada que se lança Elizabeth: o que faz de alguém amável ou desejável? O que leva as pessoas a deixarem suas chaves, suas histórias, seus laços? Seus encontros são encontros sobre desencontros: as personagens rejeitadas como ela e a torta e aquelas que foram as agentes das rejeições vão desenhando o caminho do desencontro permanente. Esses desencontros, felizes e infelizes, culminam na história da jogadora, que é quem coloca a sorte em pauta: “você pode vencer jogadores, mas não pode vencer a sorte.” Há algo de incontrolável, de tychè como diria Lacan, em oposição ao previsível, à repetição. Dificil saber fazer com isso...
                Cada uma das histórias poderia ser comentada de diversas formas. Vou apresentar o que entendi como constante no cruzamento entre elas. Enfim, é depois de devorar uma torta (não qualquer uma, mas aquela que ela seria caso fosse uma) que decide ir embora. “Ser outra pessoa”. Mas, ela se pergunta: “Como ir embora e viver sem alguém sem o qual não se imagina viver?”. Elizabeth segue então com o mesmo dilema de Arnie: quando ele insiste em dizer que é marido de Sue Lyyn e ela nega, ele pergunta “Sou o que, então?”. O enigma do amor é o que perpassa as diferentes buscas. No fim das contas, trata-se do enigma do ser: quem sou eu... para você? Ou ainda, quem sou eu, se não for para você?
“Às vezes, dependemos dos outros como um espelho para definirem e nos dizerem quem somos nós. E cada reflexo me faz gostar de mim mesma um pouco mais.” Esta frase de Elizabeth, já no final de sua jornada, me faz pensar neste truque ou enigma amoroso. Isso porque é sempre um truque do reflexo, um engano que se produz da nossa necessidade do outro para nos situarmos no mundo. Aliás, é este o pano de fundo do filme : o tema das imagens. Elizabeth encontrou suas saídas em outros reflexos, como ela mesma aponta. Já Arnie não pôde sair do vazio... Do nada em que se viu transformado sem a esposa. Ele desistiu da intenção de ficar sóbrio (das fichas brancas) e Elizabeth enxergou na sua torta uma saída para o seu « vício », suas “fichas de sobriedade », como ela chama.

Mas o que isso diz da relação amorosa? Há uma faceta do amor que é sempre tóxica, muitos psicanalistas exploram esse tema. O amor como vício, é fácil entender. Podemos nomear isso de paixão, se preferirem. Entendo esses aspectos pela via do narcisismo: na paixão amorosa, segundo Freud, “há uma quantidade importante de libido narcísica que transborda sobre o objeto.”[1]

O retorno a si mesmo é então o que está em jogo nas relações. Daí também Lacan dizer que não existe relação sexual. Não apenas pelas questões da polaridade masculino/feminino, mas em relação à eterna busca da unidade, ou retorno à unidade, podemos dizer também. Assim, se é verdade que o amor concerne o Um, diz Lacan[2], ele não leva ninguém a sair de si mesmo, da busca da melhor versão de si mesmo. No caso de Arnie, o si mesmo esvaziou-se. Pensei também no que disse Freud em Luto e Melancolia. O eu identificado ao objeto perdido, completamente esvaziado... Elizabeth foi mais feliz ao identificar-se à torta! De qualquer forma, ela conseguiu olhar para outros espelhos e enxergar partes amáveis de si mesma... Reerguendo-se e indagando-se sobre a morte, descobre a imprevisibilidade das marcas que deixamos em cada um e escreve a Jeremy: “Me pergunto como você se lembra de mim. Como a garota que gosta de torta de blueberry ou a como a garota do coração partido”. Seja como for, parece que foi suficiente para ela. Neste sentido, esclarece Lacan[3]: “O ponto do ideal do eu é aquele de onde o sujeito se verá, como se diz, como visto pelo outro – o que lhe permitirá se sustentar em uma situação dual para ele suficiente do ponto de vista do amor. Enquanto miragem especular, o amor tem essência de engano. Ele se situa no campo instituído ao nível da referência do prazer, deste único significante necessário para introduzir uma perspectiva centrada no ponto ideal, grande I, em algum lugar colocado no Outro, de onde o Outro me vê, sob a forma que me agrada ser visto.”
                É isso que permite a aposta (final) de Elizabeth no amor, o “entregar-se” como se diz cotidianamente. Entregar-se a uma imagem agradável de si, correndo o risco de deparar-se com verdades desagradáveis ao longo do tempo. O tempo, como assinala Jeremy, aquele que dilui as belezas das primeiras miragens...




[1] Freud, S. 1921/1996. Psicologia das massas e análise do eu, p. 142.
[2] Lacan, J. 1973/1985. O Seminario, Livro XX: Mais, ainda. p. 65.
[3] Lacan, J. 1973/1998. O Seminario, Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, p. 101.

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