segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Comentário a partir de Temple Grandin – o filme, por Louise A. Lhullier

“Yo pienso (...) que es possible hablar de sujeto em la psicosis. Es posible porque hablar de sujeto siempre es, tanto em El neurótico quanto em El psicótico, um assunto de suposición. Y nos interesa suponer al sujeto em la psicosis. (...) por uma posición ética -, para nosotros se trata siempre de suponer al sujeto em la psicosis.”[1]



Histórias como a de Temple Grandin, recriadas por cineastas sensíveis, podem gerar bons filmes. Penso que este é o caso do filme sobre a vida dessa mulher tão diferente, cujo percurso pode nos ensinar tantas coisas. Sua maneira singular de ver o mundo coloca em cheque muitas crenças que repetimos sem pensar sobre verdade e mentira, realidade e fantasia, normal e anormal. O filme mostra que, afinal, ante sujeitos como Temple, só cabe falar de diferença, como lembra a fala que ela repete mais de uma vez referindo-se a si mesma: “Sou diferente, não menos” (No original em Inglês: “I’m diferent, not less”). Essa é uma frase que qualquer um poderia tomar para si, pois somos todos diferentes, sem que haja um critério último que permita afirmar que alguém é menos.  O julgamento é sempre a partir de uma determinada perspectiva, sempre parcial. Autistas de “alto desempenho” como Temple, cujas habilidades excepcionais os colocam “acima” da maioria das pessoas, sob um determinado ponto de vista, ilustram muito bem esse limite das avaliações.

No entanto, isso não impede que certas diferenças nos chamem mais atenção do que outras, que nos causem mais estranheza e levem à rejeição dos diferentes, a tratá-los com hostilidade. O filme mostra, com muita sensibilidade, que é possível lidar com os “mais diferentes” de maneiras que produzem efeitos muito diversos. Ou seja, destaca a importância das escolhas que se faz ante uma diferença radical. Assim fazendo, coloca em pauta uma questão ética, e por essa via este comentário encontra a perspectiva ética própria da psicanálise.

Um primeiro exemplo é trazido pelo primeiro médico retratado nessa ficção, que reproduz um comportamento infelizmente ainda comum. Ante ele uma criança autista, que se apresenta à consulta calada, aparentemente alheia ao que se passava em torno dela. O médico se dirige apenas à mãe, nunca à criança, que não recebe nenhuma atenção de sua parte. Coloca uma série de perguntas à mãe a partir de um padrão de “comportamento evolutivo normal” que orienta sua prática. As respostas que recebe fazem com que diagnostique a menina como autista[1]. Seu prognóstico é pessimista - “talvez nunca fale” -, não oferece nenhuma esperança – “não há tratamento” – e recomenda a institucionalização, o que significa exclusão da vida familiar e drástica redução das oportunidades de convívio social. Tivesse essa mãe aceito o veredicto médico, provavelmente Temple seria mais um número a contabilizar nas estatísticas dos pacientes “crônicos” ou “incuráveis” condenados ao confinamento perpétuo, a uma vida sem perspectivas e sem qualquer esperança. Ora, nas palavras de Temple: “A natureza é cruel, mas isso significa que nós precisamos agir com crueldade?”

A mãe de Temple escolheu outra via, não a da crueldade: fez algo fundamental para evitar que se cumprisse o sombrio prognóstico do médico: apesar do mutismo, de se sentir rejeitada, das crises que irrompiam com violência e sem qualquer aviso e do aparente alheamento de sua filha, apostou na possibilidade do encontro com um sujeito que, por razões que ela desconhecia, se recusava à comunicação, mas que ela não desistiu de alcançar. Ela tomou a si a responsabilidade por essa criança à qual não se aplicavam os métodos e técnicas comuns de educação dos filhos, buscando e encontrando alternativas.

O depoimento de Temple em entrevista de 1996 ao Dr. Stephen Edelson, evidencia o acerto da aposta materna quando supôs que, sim, sua filha estava ali:

“De quando tinha três anos e meio, também lembro alguma coisa. Posso lembrar da frustração de não conseguir falar. Eu sabia o que queria dizer, mas não conseguia botar as palavras para fora; assim, apenas gritava. Posso lembrar disso claramente. [2]

Na mesma ocasião ela relatou ao entrevistador outra lembrança que evidencia a necessidade de se supor que para além do mutismo, do alheamento, dos gritos e das manifestações que nos soam estranhas há um sujeito:

“Posso lembrar de uma vez em que estava em uma sessão de fonoterapia na creche. A professora usava uma varinha, um apontador de quadro-negro, para mandar os alunos fazerem alguma coisa e eu gritava cada vez que ela me apontava. Gritava porque tinham me ensinado, em casa, que nunca se deve apontar um objeto para uma pessoa porque ele pode furar seu olho. Eu não conseguia dizer à professora que tinha aprendido a não apontar coisas para as pessoas.”

Em outro momento do filme, ante a construção de Temple da sua primeira “máquina do abraço”, um recurso que inventou para acalmar-se, para lidar com suas crises, ela é encaminhada a um profissional “psi” – não se especifica de qual orientação teórica – que fala com ela sentado de lado e com seu olhar sempre em outra direção. Esse homem conduz uma espécie de interrogatório. Ele pergunta e ela responde, mas o mal-entendido é total. Temple não percebe o cunho sexual de certos eufemismos usados pelo entrevistador como, por exemplo, quando ele pergunta se ela gosta de se “tocar”. E o profissional não percebe que, quando ela responde que tocar-se não é um problema para ela – I’m OK with touching myself – ela não se referia a nada sexual, tema pelo qual não consta que jamais tenha demonstrado interesse.

Portanto, o filme ilustra muito bem que a dificuldade está dos dois lados: assim como para um autista é impossível compreender muitas coisas do mundo dos “outros”, a nossa realidade psíquica, nós, os “outros” temos a mesma dificuldade para entender a sua realidade que, muito mais próxima do real, da realidade material, pois seu contato com o mundo dos objetos não passa pela mediação simbólica ou pela especularidade que constitui o imaginário.

Há mais de um século Freud partiu daquilo que aprendeu com as histéricas para fundar a psicanálise e da análise do Caso Schreber para pensar a psicose. Lacan seguiu a trilha aberta pelo pensamento fundador do “pai da psicanálise”, desenvolvendo a teoria psicanalítica a partir da experiência clínica. A prática da psicanálise foi, desde o seu início, indissociável da teoria, caracterizando-se como uma práxis sensível às transformações da cultura em seus efeitos sobre a constituição dos sujeitos contemporâneos.  Por essa razão, na psicanálise de orientação lacaniana, temos muito a aprender com os sujeitos autistas, na medida em que as dificuldades em compreender o que vivenciamos em nossa prática com eles possam operar como causa de nosso desejo, contribuindo para sustentar  a psicanálise como pensamento vivo, em movimento.



[1] Aparentemente, na realidade, o diagnóstico “autista” somente surgiu na adolescência, embora no filme seja diferente. (ver, a propósito a entrevista de Temple no endereço
http://caminhosdoautismo.blogspot.com/2010/04/entrevista-temple-grandin-por-tony.html)
[2] Disponível em Português na Internet: http://www.universoautista.com.br/autismo/modules/works/item.php?id=17

Louise A. Lhullier - Psicanalista, correspondente da Seção Santa Catarina da EBP, pesquisadora e professora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

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