O comentário a seguir foi apresentado na atividade "Psicanálise vai ao Cinema", no dia 18 de março de 2011, por Gresiela Nunes da Rosa - psicanalista
É impressionante pensar que Adolf Hitler tenha formulado uma teoria de extermínio de tão longo alcance e mais impressionante ainda é saber que tal teoria ganhou a realidade prática de maneira tão destrutiva. Mas talvez ainda mais impressionante é saber que sua idéia para ter alcançado a execução prática necessitou e contou com muitos. Não foi Hitler quem pôs em ação toda a sua idéia de extermínio daqueles que segundo ele mesmo eram de estirpe inferior como os testemunhas de Jeová, eslavos, poloneses, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, e, claro, o judeus. Hitler necessitou de muitos outros para colocar em ação suas idéias. E muitíssimos outros estiveram do seu lado, realizando o extermínio de milhares de pessoas. E por que, como, estes outros puderam compactuar com a idéia de Hitler? Como tantos juntos puderam compartilhar uma noção tão equivocada? Esta é uma indagação que desde o acontecido está presente no pensamento de muitos. E muitas hipóteses foram expressadas.
Parece que “A fita branca”, mesmo sem explicitar, nos convoca a concordar com uma teoria. A teoria de que o estilo de vida, a educação, a moral severa, estas bastantes vinculadas à agressividade, tenham repercutido no ímpeto dos sujeitos a também exercer a mesma agressividade severa sobre os outros. Wilhelm Reich formulou esta hipótese, a de que uma vida tomada por repressões demasiadas necessariamente repercute em neurose grave, e é um fator determinante para a uma aderência à ideologia fascista.
“A fita branca”, como podemos perceber, retrata uma comunidade alemã, no início do século XX. Vários acontecimentos misteriosos giram em torno do tema da violência e da agressividade, outros nem tão misteriosos e até totalmente explícitos também giram em torno do tema da agressividade. É um filme angustiante, irritante, perturbador, e faz surgir em nós, talvez vocês concordem, sentimentos de raiva e tensão agressiva. Indignamos-nos com tamanha repressão moral e religiosa impingida aos personagens do filme, principalmente às crianças, temos um verdadeiro sentimento de revolta e absurdo. E pensamos, “não é à toa que estas pobres crianças, vinte anos mais tarde se tornaram os criminosos responsáveis pelo nazismo, pelo holocausto”. Quase que nos compadecemos pelos criminosos, porque interpretamos diante dessas imagens que o mal tem uma raiz, tem um sentido. E neste caso, a raiz do mal que foi o nazismo está nitidamente representado nos modos de vida destes alemães. O interessante é que mesmo sem o explícito, fazemos rapidamente esta conexão.
Ao ser indagado e criticado pelo fato de o filme fazer “uma distorção performática que permite ao espectador flertar com a perspectiva de uma despolitização das raízes do nazismo e de uma germanização do próprio mal”
[i], Haneke faz o seguinte comentário:
“Não ficaria feliz se esse filme fosse visto como um filme sobre um problema alemão, sobre o nazismo. Este é um exemplo, mas significa mais que isso. É um filme sobre as raízes do mal. É sobre um grupo de crianças, que são doutrinadas com alguns ideais e se tornam juízes dos outros – justamente daqueles que empurraram aquela ideologia goela abaixo deles. Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria. E este não é um problema só do fascismo da direita. Também vale para o fascismo da esquerda e para o fascismo religioso. Você poderia fazer o mesmo filme – de uma forma totalmente diferente, é claro – sobre os islâmicos de hoje. Sempre há alguém em uma situação de grande aflição que vê a oportunidade, através da ideologia, para se vingar, se livrar do sofrimento e consertar a vida. Em nome de uma idéia bonita você pode virar um assassino.”
[ii]
De qualquer forma, em seu discurso, Haneke não nega seu maniqueísmo, pelo contrário o reafirma. Talvez melhor tenha sido o seu discurso diante de alguma pergunta sobre qual era a mensagem de seu filme “A professora de piano”, quando respondeu: “Meu filme não tem mensagem, isso é coisa para os correios”.
A perspectiva, apontada para a psicanálise, de que o principal motivo da aderência ao nazismo tenha a ver com o fator libidinal na população alemã, no que diz respeito ao alto grau de tensão e repressão (perspectiva reichiana?), é bastante tentadora para nós. E ainda podemos somar a esta perspectiva, ainda outros fenômenos, também subsidiados pela psicanálise de que o sucesso do nazismo foi motivado pela “identificação imaginária com um líder carismático e paternal
[iii] (perspectiva freudiana?) Ainda uma terceira hipótese com bases psicanalíticas parece ter sentido: a da identificação simbólica dos sujeitos entre si através da captação da semelhança de traços entre eles, uma questão de construção de semblantes.
A crítica à Haneke baseia-se no fato de que sua produção, bem como a maior parte do que se produziu culturalmente a respeito do nazismo, segue a linha de que há uma germanização, genética inclusive, no que diz respeito ao nazismo. Sempre aí sugerido o princípio maniqueísta de interpretação do fenômeno, representado de forma espetacularmente teatral.
Mas o fato é que gostamos da idéia de buscar um sentido, principalmente para aqueles acontecimentos que, queremos crer, podemos mantê-los controlados e quem sabe distantes. Fazemos, como dizemos na psicanálise lacaniana, um movimento do tipo àpres-coup, depois de acontecido o fenômeno 2, buscamos como sentido um fenômeno primeiro, o 1. E claro que algo tão desmesurável como o acontecimento do nazismo e suas conseqüências, como o holocausto, queremos compreendê-los para mantê-los sobre controle e afastado de nós tal possibilidade. Gostamos da idéia de que se tratarmos bem nossas crianças e se não nos reprimirmos tanto manteremos o mal à distância.
Haneke, além da crítica que sofre sobre o tal equivoco a respeito da interpretação do que fez resultar o nazismo, também recebe críticas no que diz respeito ao estilo de linguagem que utiliza não só neste filme mas também nos outros de seu currículo, que é o cinismo.
Parece bastante interessante esta discussão. Entende-se, resumidamente, como cinismo um não-engajamento do sujeito em relação ao que diz
[iv]. É interessante perceber que a história no filme é relatada pelo professor, que está um tanto quanto fora da própria história, e relata-a sem muita emoção, quase como um pura e qualquer descrição dos fatos, restando a nós, os expectadores o julgamento e o sentimento em relação aos acontecimentos relatados. Cinismo é uma forma de racionalização. E um certo tom de relativismo presente no discurso cínico, como toda a racionalização, tampona o não sabido e o que decorre disso, o desamparo. A crítica que se faz a esta possibilidade discursiva é que ela “é capaz de sustentar muito bem uma mentira sem que haja a necessidade de se questioná-la a partir da verdade como valor de referencial”
[v], e assim, dá pouquíssima margem para o pensamento reflexivo e crítico.
Mas é interessante a idéia de que se tenha utilizado este mecanismo discursivo para falar sobre algo tão indizível quanto o que foi o nazismo e o holocausto. E de qualquer forma fica a questão: é justo que queiramos uma ética, ou talvez mais, uma moral, na arte?
[i] Feitosa, Frederico Antonio Cordeiro. Cinema e cinismo: distorções performativas e fruições contemporâneas em Michel Haneke. In: Estudos de Cinema, no. 23. Porto Alegre: Famecos/PUCRS, agosto de 2010.
[ii] Entrevista concedida a Anthony Lane, na revista “New Yorker”, em 05 de outubro de 2009, livremente traduzida por Maurício Stycer.