terça-feira, 9 de setembro de 2008

Felicidade pronta-entrega: felizes a qualquer preço?


“A procura da felicidade” é um drama lançado em 2006 que retrata um “sonho americano”, no qual o trabalho duro supera os obstáculos rumo ao sucesso. O filme narra parte da história de Chris Gardner, personagem interpretado por Will Smith. O pequeno extrato da história de Gardner e o modo pelo qual o roteiro coloca em suspenso um ideal do personagem propiciam o efeito dramático. A admissão de Gardner em um emprego de corretor de ações produz o efeito de que “valeu a pena o sacrifício”, indica o paraíso de uma carreira cheia de sucessos profissionais e recheada com um milhão de dólares. A produção da descarga de afeto ao final do filme, tanto do personagem como do espectador, é um efeito subtraído do encontro de toda variedade de sofrimentos de Gardner, oriundos de seus relacionamentos, com a cena ulterior em que realiza seu desejo: concluir o estágio de seis meses e obter o primeiro lugar à vaga do emprego. Vale destacar alguns dos obstáculos entre ser o nada e o ideal: a esposa que o abandona, o filho para criar, a falta de dinheiro e de um lugar para dormir. Trata-se de um roteiro básico, mas que apresenta uma velha noção sobre felicidade. Na verdade, o filme é desenvolvido em torno da seguinte questão: por que Thomas Jefferson, na Declaração da Independência dos EUA, escreve que entre os direitos inalienáveis da vida e da liberdade está também o da procura da felicidade? Como assinalou Jacques Lacan (1901-1981), a partir de Louis de Saint-Just (1767-1794), revolucionário francês e autor de l'Esprit de la Révolution et de la Constitution de France (1791), a felicidade tornou-se assunto de ação política e o governo passou a ser defensor da felicidade geral. Atualmente, uma das formas de pôr em prática essa ação consiste nas políticas higienistas de saúde pública em torno da depressão, através da medicamentação, à pronta entrega. Estamos perdendo o direito de ficar tristes, de chorar uma perda, de realizar um luto. A procura da felicidade passou de direito para dever do cidadão. Trata-se de ser feliz a qualquer preço.
No filme, as cenas são nomeadas pelo próprio personagem: “andando de ônibus”, “fazendo papel de idiota”, “abandonado pela esposa”, “correndo atrás do prejuízo”, “sem lugar para morar”, entre outras. Todas são uns perrengues. Na última cena, a do Juízo Final, Gardner recebe a notícia de que foi o escolhido para a única vaga e algo se realiza através da sua fala: “esta pequena parte da minha vida chama-se felicidade”.
Por mais melodramático que se possa qualificar o filme, a noção de felicidade na qual o roteiro se debruça aproxima-se da descrição que Freud dá em seu livro O mal-estar na civilização (1930). Para Freud, a felicidade é um contraste entre o desprazer e o prazer, entre o sofrimento e a satisfação de uma necessidade. A felicidade é um efeito da satisfação de uma necessidade represada em alto grau, que por natureza é sempre uma manifestação episódica. Por conseguinte, a felicidade é um momento em nossas vidas, uma cena na história narrada da qual somos o personagem principal. Apesar de não existir a felicidade absoluta, não significa que devemos desistir de procurá-la nos contrastes da vida: “o designo de ser feliz, que nos impõe o princípio do prazer, é irrealizável, mas não se deve abandonar os esforços de aproximar-se de qualquer modo à sua realização” (Freud).
Essa procura está diretamente relacionada ao que em psicanálise denomina-se princípio do prazer, princípio dominante do aparelho psíquico e que geralmente está em desacordo com o programa da civilização. Como podemos observar no filme, toda a cidade de São Francisco parece conspirar contra o programa de Gardner. De um lado temos a realidade, os obstáculos; do outro temos o sonho, o ideal perseguido. Do princípio do prazer se extrai o princípio de realidade a partir do confronto com três fontes de ameaças de sofrimento: nosso próprio corpo, condenado a decadência; o mundo externo, que se volta contra nós com forças de destruição esmagadoras; e nossos relacionamentos com outros homens. Nesse sentido, é a realidade, a ameaça de sofrimento, que regula o prazer. Ora, mas o que a felicidade tem a ver com a realidade? Tem a ver com o fato de que um homem pode sentir-se feliz simplesmente por ter escapado ou sobrevivido a uma dessas três fontes de sofrimento. Os modos de evitação do sofrimento, paradoxalmente, implicam uma posição covarde perante o desejo.
“Felicidade pronta-entrega: felizes a qualquer preço?” é o título da III Jornada da Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise, que ocorrerá nos dias 12 e 13 de setembro no auditório da FECOMÉRCIO, localizado em Florianópolis. Nesse evento, teremos a realização de um Seminário Internacional proferido pelo psicanalista Maurício Tarrab, membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e mais quatro mesas em que serão apresentados trabalhos de psicanalistas, psicólogos e outros profissionais da saúde. A primeira mesa, “Felicidade e laço social. É possível ser feliz sozinho?”, privilegia a discussão em torno da relação do sujeito com seus pares, uma das fontes de ameaça de sofrimento. A segunda mesa, “Uso da medicação e função da fala nos estados depressivos”, coloca em debate a medicamentação da tristeza e as políticas públicas de higienização, já que a felicidade é assunto de política. A terceira mesa, “O imperativo da felicidade nos sintomas contemporâneos”, enfatiza a torção entre o direito e o dever, bem com a inserção do sujeito no social, que se dá por modos específicos da relação com o outro. A última mesa, “Da miséria neurótica à infelicidade comum”, coloca em discussão a orientação e a direção do tratamento psicanalítico nos tempos do imperativo de felicidade.
O convite à participação no evento se estende a toda comunidade de Florianópolis interessada no tema. Para maiores detalhes (inscrição, programa, local, horário, etc.), deve-se realizar contato com a secretaria da EBP-SC através do telefone (48) 3222-2962, e-mail ebpsc@newsite.com.br ou site www.ebpsc.com.br.


* Este texto foi publicado com algumas alterações no Diário Catarinense, em 06/09/2008, no Caderno de Cultura.

Luis Francisco Espíndola Camargo (Psicanalista, Psicólogo e Músico. Doutorando em Psicologia pelo PPGP/UFSC e Correspondente da Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise. E-mail: lfe.camargo@gmail.com)

Um comentário:

Anônimo disse...

Chico, que legal seu texto!! Me lembro quando assisti esse filme e realmente fiquei com o coração na boca o tempo todo esperando a ver que iría acontecer com o pobre cara. Mas também pensei que quanto mais grande é o ideal, e mais a pressão de "ter que ganhar"; nesse filme não cavíam (como deixaste claro)pontos medios. Se pensamos que a felicidade tem a ver com esses brves momentos de "satisfação", então não poderiamos considera-la quando falamos de desejo e bem-estar, digamos, quando a coisa vai mais devagar, sinuossa, um pouco bem e um pouco mal.
Adorei o relato, parabéns!!!
Laura